A primeira página desse manual - se é que honestidade, competência e bom senso necessitem de algum manual - seria a constante lembrança do conceito de bem público, da importante responsabilidade assumida e das severas sanções resultantes de qualquer irregularidade ou conduta imprópria. Se o exercício da atividade política (por excelência a representação da população de um país) não tivesse qualquer remuneração, benefício e benesse, talvez vivêssemos no caos, ou, em algo parecido com uma enorme Suíça, quem sabe. De qualquer maneira o caos já existe.
Não aceito e não me acostumo com os padrões criados e tolerados ao longo do tempo que, infelizmente, pretendem justificar os atos ilícitos praticados. Não, o poder não corrompe o homem; não é necessário ser desonesto para governar; conchavos não são necessários para exercer a competência definida; o exercício da atividade pública não torna as pessoas milionárias; governar, enganar e roubar são verbos totalmente incompatíveis; e a pior de todas: é inadmissível a necessidade de levar vantagem em tudo.
Os trechos abaixo localizei na internet e podem ser do relatório escrito pelo genial Graciliano Ramos, natural de Quebrangulo, Município alagoano que faz parte da Microregião de Palmeira dos Índios (Quebrangulo, Palmeira dos Índios, Cacimbinhas, Estrela de Alagoas, Marinbondo e outros) no agreste alagoano, que antes de se tornar escritor foi comerciante e prefeito do Município de Palmeira dos Índios, eleito em 1926 para o período de 7 de janeiro de 1927 a 10 de abril de 1930.
Não aceito e não me acostumo com os padrões criados e tolerados ao longo do tempo que, infelizmente, pretendem justificar os atos ilícitos praticados. Não, o poder não corrompe o homem; não é necessário ser desonesto para governar; conchavos não são necessários para exercer a competência definida; o exercício da atividade pública não torna as pessoas milionárias; governar, enganar e roubar são verbos totalmente incompatíveis; e a pior de todas: é inadmissível a necessidade de levar vantagem em tudo.
Os trechos abaixo localizei na internet e podem ser do relatório escrito pelo genial Graciliano Ramos, natural de Quebrangulo, Município alagoano que faz parte da Microregião de Palmeira dos Índios (Quebrangulo, Palmeira dos Índios, Cacimbinhas, Estrela de Alagoas, Marinbondo e outros) no agreste alagoano, que antes de se tornar escritor foi comerciante e prefeito do Município de Palmeira dos Índios, eleito em 1926 para o período de 7 de janeiro de 1927 a 10 de abril de 1930.
"Pefeitura Municipal de Palmeira dos Índios
Relatório
Ao Governo do Estado de Alagoas
Exmo. Sr. Governador:
Trago a V.Ex.ª um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928.Não foram muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim, minguados, entretanto, quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o Município se achava, muito me custaram.
COMEÇOS
O principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na Administração.
Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejavam administrar. Cada pedaço do Município tinha um administrador particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam.
Para que semelhante anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administrava melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro.
Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restaram poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem com suas obrigações e, sobretudo, não se enganam nas contas. Devo muito a eles.
Não sei se a administração do Município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior.
RECEITA E DESPESA
A receita, orçada em 50:000$000, subiu, apesar de o ano ter sido péssimo, a 71: 649$290, que não foram sempre bem aplicados por dois motivos: porque não me gabo de empregar dinheiro com inteligência e porque fiz despesas que não faria se elas não estivessem determinadas no orçamento. (...)
ILUMINAÇÃO
A iluminação da cidade custou 8:921$800. Se é muito, a culpa não é minha; é de quem fez o contrato com a empresa fornecedora de luz. (...)
CEMITÉRIO
ADMINISTRAÇÃO
A administração municipal absorveu 11:457$497 – vencimentos do Prefeito, de dois secretários (um efetivo, outro aposentado), de dois fiscais, de um servente; impressão de recibos, publicações, assinatura de jornais, livros, objetos necessários à secretaria, telegramas.
Relativamente à quantia orçada, os telegramas custaram pouco. De ordinário vai para eles dinheiro considerável. Não há vereda aberta pelos matutos, forçados pelos inspetores, que a prefeitura do interior não ponha no arame, proclamando que a coisa foi feita por ela; comunicam-se as datas históricas ao Governo do Estado, que não precisa disso; todos os acontecimentos políticos são badalados. Porque se derrubou a Bastilha – um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua – um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela – um telegrama. Dispêndio inútil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós choramos e que em 1559 D. Pedro Sardinha foi comido pelos caetés.
ARRECADAÇÃO
As despesas com a cobrança dos impostos montaram a 5:602$244. Foram altas porque os devedores são cabeçudos. Eu disse ao Conselho, em relatório, que aqui os contribuintes pagam ao Município se querem, quando querem e como querem. Chamei um advogado e tenho seis agentes encarregados da arrecadação, muito penosa. (...)
LIMPEZA PÚBLICA
(...) Cuidei bastante da limpeza pública. As ruas estão varridas; retirei da cidade o lixo acumulado pelas gerações que por aqui passaram. (...)
Houve lamúrias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado em fundos de quintais; lamúrias, reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cães vagabundos; lamúrias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dos fazendeiros que criavam bichos nas praças. (...)
TERRAPLENO DA LAGOA
O espaço que separa a cidade do bairro da Lagoa era uma coelheira imensa, um vasto acampamento de tatus, qualquer coisa deste gênero. (...)
Durante meses mataram-me o bicho de ouvido com reclamações de toda ordem contra o abandono em que deixava a melhor estrada para a cidade. Chegaram lá pedreiros – outras reclamações surgiram, porque as obras irão custar um horror de contos de réis, dizem. Custarão alguns, provavelmente. Não tanto quanto as pirâmides do Egito, contudo. O que a Prefeitura arrecada basta para que nos não resignemos às modestas tarefas de varrer as ruas e matar cachorros.
Até agora as despesas com os serviços da lagoa sobem a 14:418$627.
Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estive nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc., sempre procedo melhor que se distribui-se com os meus parentes, que necessitam, coitados.
Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estive nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc., sempre procedo melhor que se distribui-se com os meus parentes, que necessitam, coitados.
DINHEIRO EXISTENTE
Deduzindo-se da receita a despesa e acrescentando-se 105$865 que a administração passada me deixou, verifica-se um saldo de 11:044$947.
40$897 estão em caixa e 11:044$050 depositados no Banco Popular e Agrícola de Palmeira. O Conselho autorizou-me a fazer o depósito.
Devo dizer que não pertenço ao banco nem tenho lá interesse de nenhuma espécie. A prefeitura ganhou: livrou-se de um tesoureiro, que apenas servia para assinar as folhas e embolsar o ordenado, pois no interior os tesoureiros não fazem outra coisa, e teve 615$050 de juros. (...)
LEIS MUNICIPAIS
Em janeiro do ano passado não achei no Município nada que se parecesse com lei, fora as que havia na tradição oral, anacrônicas, do tempo das candeias de azeite. Constava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem.
Afinal, em fevereiro, o secretário descobriu-o entre papéis do Império (...). Encontrei no folheto algumas leis, aliás, muito bem redigidas, e muito sebo. Com elas e com outras que nos dá a Divina Providência consegui agüentar-me, é que o Conselho, em agosto, votou o código atual.
CONCLUSÃO
Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis.
Evitei emaranhar-me em teias de aranha. Certos indivíduos, não sei por que, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem os impostos. Não me entendi com esses. Há quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem com assunto invariável; há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal; há até quem pretenda embaraçar-me em coisa tão simples como mandar quebrar as pedras do caminhos.
Fechei os ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1:325$500 de multas.
Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca.
Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta. Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos.
Paz e prosperidade.
Palmeira dos Índios, 10 de janeiro de 1929.
Graciliano Ramos".
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