domingo, 5 de outubro de 2008

Loves

"Al love is born within love
grows larger in its belly
spreads into its space, inhabits it
desires permanence, lays claim to time
prevails, enjoys its superiority
and as soon as it is satisfied with its gains
another love is born in its belly
grows larger, spreads into its space
threatens to tear it to pieces.
But sometimes lovers stop
feeding on their adversaries’ flesh
and exchange stone likenesses
that remain unaltered within the surrounding decay
and coexist without pointless hostilities
more or less amicably, like the busts
of rival leaders in cemeteries."

Titos Patríkios

Imagem Norman Rockwell

sábado, 4 de outubro de 2008

A magia da sopa


"Se Deus me dissesse para escolher a comida que eu iria comer no céu, por toda a eternidade, eu não teria um segundo de hesitação: escolheria sopa. Camarão, picanha maturada, salmão à Dali, os pratos mais refinados: tudo me seria insuportável após umas poucas repetições. Mas não é assim com as sopas. Posso tomar sopa por toda a eternidade, sem me cansar.
Minha relação com as sopas é mais que gastronômica: é uma relação de ternura. Elas me reconduzem à cozinha de minha casa de menino, ao fogão de lenha, às tardes de inverno. A janta (janta, mesmo; jantar é coisa de rico) era servida às 5 da tarde. Ah! Uma sopa quente que se toma numa tarde fria é uma lareira que se acende no estômago. O calor, aos poucos, se espalha pelo corpo. Com umas gotinhas de pimenta, então, ele se transforma em suor, e se a gente não usa o guardanapo a tempo, as gotas de suor na testa acabam por cair no prato da sopa...
Para mim a sopa é um sacramento de intimidade: um objeto físico, presente, no qual vive uma felicidade que se teve, ausente. A sopa quente me transporta para outros lugares, outros tempos. Faço e gosto de sopas frias. Sopa fria de maçã, por exemplo, tem um sabor exótico. Agrada-me ao paladar. Mas falta a essas sopas sofisticadas o elemento sacramental: elas não me levam a lugar algum. Falta-lhes o calor para me reconduzir ao espaço de intimidade.
Sopa é comida de pobre. Sopa fina, creme de aspargos, creme de palmito, sopa gelada de maçã, é nobreza posterior. As sopas fundamentais se fazem com sobras. Sobra, é só pobre quem guarda. Sopa é comida de guerra, de fome, quando qualquer raspa de comida é bem precioso, que não pode ser perdido. Rico não guarda sobra. Não precisa. É humilhante. Sobra de rico vai para o lixo. Sobra de pobre vai para o caldeirão de sopa. As sopas fundamentais se fazem com sobras, destinadas ao lixo. A sopa é uma poção mágica por meio da qual o que estava perdido é salvo da perdição e reconduzido à circulação da vida e do prazer.A imaginação de Bachelard diz que a matéria também imagina. A água imagina arcos-íris. As sementes imaginam flores e árvores. O mármore imagina ‘Beijos’ (Rodin) e Pietás (Miguel Ângelo). O rios imaginam nuvens (Heládio Brito). As comidas também imaginam. O churrasco imagina espetos, facas, garfos: objetos fálicos, masculinos, infernais. O churrasco precisa de perfurações, cortes, dilacerações. As mandíbulas lutam com a carne. A carne resiste.
Já a sopa é mansa. Não é para ser comida. A colher é um côncavo, um vazio, o feminino. Nada é perfurado. O gesto é o de ‘colher’: a colher colhe, sem violência. Sempre tive implicância com uma etiqueta snob, para a tomação de sopa: que o delicado é tomar a sopa com o lado da colher, e não com o bico. Ora, ora - eu argumentava - por analogia a gente deveria comer comida sólida com o lado do garfo - o que não é possível. De fato. Não é possível. É que o garfo pertence à ordem dos talheres pontiagudos, perfurantes: entram pela frente. A colher pertence à ordem dos talheres discretos e modestos: entram pelo lado, mansamente...
Salvador Dali, quando menino, sonhava em ser cozinheiro. Preferiu a pintura e produziu suas maravilhosas telas surrealistas. O realismo, em pintura, se constrói sobre o pressuposto de que as coisas são aquilo que parecem ser, nem mais e nem menos. Os olhos, diante de uma tela realista, jamais experimentam a surpresa do impossível ou do impensado. O realismo confirma aquilo que os olhos comumente vêem. O surrealismo, ao contrário, acha que aquilo que os olhos comumente vêem é muito pouco: se olharmos com atenção perceberemos que as coisas são, ao mesmo tempo, o que são e também outras: elefantes se refletem nas águas de um lago como cisnes, cenários compõem o corpo erótico de uma mulher, o corpo de Cristo é transparente e através dele se vêem mares, montanhas e barcos. O realismo confirma o criado. O surrealismo recria o criado.
As sopas são a versão culinária do surrealismo. Tivesse realizado sua vocação primeira, Salvador Dali seria um especialista em sopas. Pois as sopas se fazem negando as coisas, na sua realidade natural bruta e transformando-as por meios das relações insólitas que o caldo torna possíveis. O caldo da sopa é o meio mágico que junta no caldeirão aquilo que, na natureza, nasceu separado. Creio ser impossível catalogar as combinações possíveis: fubá, trigo, batata, alho, cebola, nabo, cenoura, tomate, ervilha, ovo, abóbora, mandioca, cará, inhame, carne, peixe, galinha, mariscos, repolho, couve, beterraba, aspargo, palmito, feijão, arroz, queijo, azeitona, pão, maçã, abacate, temperos, pimentas, orégano, tandore - uma canja verdadeira não é canja se lhe faltarem algumas folhinhas de hortelã. E é preciso não nos esquecermos que sopa é a única comida que pode ser feita com pedra, como nos é relatado numa das estórias clássicas que se conta para crianças e adultos.
Gosto das sopas, ainda, por serem elas entidades do mundo dos magos, bruxas e feiticeiros. No mundo mágico não se usa churrasco. Magos, bruxas e feiticeiros fazem suas poções em enormes caldeirões de sopa, como é o caso de Panoramix, druida do Asterix e do Obelix, que prepara sua beberragem de força imbatível num caldeirão de sopa fervente.
Prefiro as sopas rústicas - e fazê-las me dá um grande prazer. A sopa de fubá em suas múltiplas versões, o caldo verde, a canja com hortelã, a multicolorida sopa de legumes: sopas são sempre uma alegria. As sopas rústicas dão permissão para se jogar nelas o pão picado. Haverá coisa mais feliz que isso? Reuno-me com alguns amigos, às 3as. feiras, para ler poesia, ao redor de um prato de sopa.
Uma última informação: sopas são remédios maravilhosos contra depressão. Quando a sopa quente, cheirosa, colorida e apimentada, bate no estômago, a tristeza se vai e a alegria volta. Não há melancolia que resista à magia de um prato de sopa..." (Concerto para corpo e alma, p. 69.)

Rubem Alves

Old fashioned way


The demon

"Out of the body
emerges the demon
out of the body
extend
tentacles which
grapple towards the
other body
to suck out glances,
embrace
limbs, quarry entrails,
out of the body
project saliva sperm
sweat-ducts
channels for the
instillation of vaginal
fluids
for the pincers to
open and close, the
joints
to function, and the
otherwise unpaired,
unworldly bodies
to engage like cogs
It’s exactly the same
body
that suckles and
nurtures and restores
some things
and sucks out and
milks and empties
others
and burns up yet
others like a jet of fire
reducing flesh and
bones to ashes
yet without ever
annihilating
memories and
fantasies.
Out of the bodies’
ashes
emerges the demon
again
as painters depicted it
in churches that
haven’t been
completely deserted
the demon with goat’s
legs
forked tongue, red
eyes, snake’s tail
a huge, inflated yet
smooth member
sexless, androgyne
that lurks in all of us
the dog squashed on
the tarmac
its bloody tongue
hanging out
like a red penis after
ejaculation
steaming guts gaping
open
quivering like an
insatiable vulva.
At any moment it may
emerge from within us
fly out of our mouths
with our kisses, our words
our food, our squeals
of pleasure and pain –
the demon we carry
all our years
in a gestation that’s as
endless
and brief as our lives.
At any moment it too
may
break free of us."

Titos Patríkios

sábado, 27 de setembro de 2008

Luís Miguel Nava

"O mar está-nos no corpo; enquanto alguém
a quem o coração serve de rei dispõe no tabuleiro as outras peças

rebenta-lhe na mão; há entre as peças
e o mar cumplicidades de que só quem joga estima o peso em cada lance."

* * *

"O corpo dividido em duas partes fechadas
à chave uma na outra, avanço num duplo coração como se fosse
ao mesmo tempo num só barco por dois rios."

* * *

"Cresceram-me entre os ossos já as primeiras ervas.
Talvez dos descampados que me vêm
do espírito acabar à boca dos sentidos
por fim surjam aqueles que quando escavam
o fazem como se avançassem
assim para uma vida mais autêntica.
Terão o tempo nas mãos como uma enxada.
Brilhar-lhes-ão nas pás
pedaços do meu corpo que respiram."

* * *

"Começam-nos as trevas a romper
a carne, comparáveis
a neve que do céu
caísse ensanguentada

ou pedra que, ao tombar
num lago, o abrisse
em sucessivos círculos, alguns
dos quais já fora de água, em plena vida,

alguém
no meio da paisagem
empunha um calorífico

enquanto eu, que de roupa
não trago mais que um lenço,
com ele cubro a cabeça para não morrer,

aqui ninguém ignora
que os lagos gelam a partir das margens
e o homem a partir do coração,

que a luz
ascende do vazio
e tudo o que nos resta mais não é
que um sol sem crédito
num céu desafectado,

envolvem-nos as trevas
os ossos, dir-se-ia
que a própria morte
nos serve aqui de pele, como a um morcego."

Luís Miguel Nava

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Allegory

"When the oak tree fell
some cut a branch and stuck it
in the ground
calling upon people to
venerate the same tree,
others mourned in elegies
the lost forest their lost life,
others made collections of
dried leaves
showed them at fairs made a
living,
others asserted the
harmfulness of deciduous
trees
but disagreed about the kind
of reforestation
or even the need for it,
others, including me, claimed
that as long as there are
earth and seeds there’s the
possibility of an oak.

The problem of water remains
open."

Tito Patríkios

Imagem de Eisenstaed

Estacas

"Os meus ossos estão espetados no deserto, não há um só
no meu corpo que lhe
escape.
Cravados todos eles na areia do deserto, uns a seguir
aos outros, alinhados.
Seria absurdo falar-se de esqueleto.
A pele foi entretanto soterrada, há quem já tenha
caminhado em cima
dela. Quem diria? A pele, outrora hasteada, uma
bandeira, quase uma coroa.
O vento apoderou-se-me das vértebras. O próprio sol
que entre elas
brilha é descarnado, um sol deserto, onde o deserto penetrou.
Talvez pudéssemos lavá-lo, este deserto, quem sabe, ou
amarrá-lo,
amordaçá-lo. A pele garante o espaço, o resto
logo se veria."

Luís Miguel Nava

Imagem de Robert Mapplethorpe

domingo, 21 de setembro de 2008

Wasted years

"Twenty wasted years (but what
would it mean to have gained them?)"
Fernando Pessoa

"All of us have some wasted years
sometimes three, sometimes seven, sometimes more
but twenty makes a nice circle
we can hark back to the past around it
without the panic that comes
with the wasted years of an entire life.
Besides, what would it mean to have gained
twenty years that shift about
each time I look back?
Steady progress according to plan
constant productivity, increased yield
recognition at the right time and appropriate
honours.
Well then, twenty futile, wasted years
that provided opportunities
for dreamed-of lives full of possibilities
that were never realized,
for enjoyment gained from identification
with people who I was never to become,
for delight and guilt at the never-ending
adjustment of goals,
for unreserved acceptances,
for frightened rejections.
Twenty wasted years
are always necessary
for an ambitious present."

Titos Patríkios

sábado, 20 de setembro de 2008

Em tempo alheio

"Peço desculpa de ser o sobrevivente"
Drummond, As Impurezas do Branco

"Demasiados mortos para a minha memória
O dia está aí um projector nos rostos
que repetem
cenas, deslocando-se entre os móveis
polidos pelos anos e as árvores, com falas retardadas
Não há quem sobreviva a ninguém no cenário
são somente aparências o que está e o que falta,
todos em cada um,
enquanto ausentes o habitam como casa
em tempo alheio
Deixastes toda a esperança vós que entrastes
na memória"

Gastão Cruz

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Eternal sunshine of spotless mind! Each pray'r accepted and each wish resign'd

"In these deep solitudes and awful cells,
Where heav'nly-pensive contemplation dwell,
And ever-musing melancholy reigns;
What means this tumult in a vestal's veins?
Why rove my thoughts beyond this last retreat?
Why feels my heart its long-forgotten heat?
Yet, yet I love! — From Abelard it came,
And Eloisa yet must kiss the name.

Dear fatal name! rest ever unreveal'd,
Nor pass these lips in holy silence seal'd.
Hide it, my heart, within that close disguise,
Where mix'd with God's, his lov'd idea lies:
O write it not, my hand — the name appears
Already written — wash it out, my tears!
In vain lost Eloisa weeps and prays,
Her heart still dictates, and her hand obeys.

Relentless walls! whose darksome round contains
Repentant sighs, and voluntary pains:
Ye rugged rocks! which holy knees have worn;
Ye grots and caverns shagg'd with horrid thorn!
Shrines! where their vigils pale-ey'd virgins keep,
And pitying saints, whose statues learn to weep!
Though cold like you, unmov'd, and silent grown,
I have not yet forgot myself to stone.
All is not Heav'n's while Abelard has part,
Still rebel nature holds out half my heart;
Nor pray'rs nor fasts its stubborn pulse restrain,
Nor tears, for ages, taught to flow in vain.

Soon as thy letters trembling I unclose,
That well-known name awakens all my woes.
Oh name for ever sad! for ever dear!
Still breath'd in sighs, still usher'd with a tear.
I tremble too, where'er my own I find,
Some dire misfortune follows close behind.
Line after line my gushing eyes o'erflow,
Led through a sad variety of woe:
Now warm in love, now with'ring in thy bloom,
Lost in a convent's solitary gloom!
There stern religion quench'd th' unwilling flame,
There died the best of passions, love and fame.

Yet write, oh write me all, that I may join
Griefs to thy griefs, and echo sighs to thine.
Nor foes nor fortune take this pow'r away;
And is my Abelard less kind than they?
Tears still are mine, and those I need not spare,
Love but demands what else were shed in pray'r;
No happier task these faded eyes pursue;
To read and weep is all they now can do.

Then share thy pain, allow that sad relief;
Ah, more than share it! give me all thy grief.
Heav'n first taught letters for some wretch's aid,
Some banish'd lover, or some captive maid;
They live, they speak, they breathe what love inspires,
Warm from the soul, and faithful to its fires,
The virgin's wish without her fears impart,
Excuse the blush, and pour out all the heart,
Speed the soft intercourse from soul to soul,
And waft a sigh from Indus to the Pole.

Thou know'st how guiltless first I met thy flame,
When Love approach'd me under Friendship's name;
My fancy form'd thee of angelic kind,
Some emanation of th' all-beauteous Mind.
Those smiling eyes, attemp'ring ev'ry day,
Shone sweetly lambent with celestial day.
Guiltless I gaz'd; heav'n listen'd while you sung;
And truths divine came mended from that tongue.
From lips like those what precept fail'd to move?
Too soon they taught me 'twas no sin to love.
Back through the paths of pleasing sense I ran,
Nor wish'd an Angel whom I lov'd a Man.
Dim and remote the joys of saints I see;
Nor envy them, that heav'n I lose for thee.

How oft, when press'd to marriage, have I said,
Curse on all laws but those which love has made!
Love, free as air, at sight of human ties,
Spreads his light wings, and in a moment flies,
Let wealth, let honour, wait the wedded dame,
August her deed, and sacred be her fame;
Before true passion all those views remove,
Fame, wealth, and honour! what are you to Love?
The jealous God, when we profane his fires,
Those restless passions in revenge inspires;
And bids them make mistaken mortals groan,
Who seek in love for aught but love alone.
Should at my feet the world's great master fall,
Himself, his throne, his world, I'd scorn 'em all:
Not Caesar's empress would I deign to prove;
No, make me mistress to the man I love;
If there be yet another name more free,
More fond than mistress, make me that to thee!
Oh happy state! when souls each other draw,
When love is liberty, and nature, law:
All then is full, possessing, and possess'd,
No craving void left aching in the breast:
Ev'n thought meets thought, ere from the lips it part,
And each warm wish springs mutual from the heart.
This sure is bliss (if bliss on earth there be)
And once the lot of Abelard and me.

Alas, how chang'd! what sudden horrors rise!
A naked lover bound and bleeding lies!
Where, where was Eloise? her voice, her hand,
Her poniard, had oppos'd the dire command.
Barbarian, stay! that bloody stroke restrain;
The crime was common, common be the pain.
I can no more; by shame, by rage suppress'd,
Let tears, and burning blushes speak the rest.

Canst thou forget that sad, that solemn day,
When victims at yon altar's foot we lay?
Canst thou forget what tears that moment fell,
When, warm in youth, I bade the world farewell?
As with cold lips I kiss'd the sacred veil,
The shrines all trembl'd, and the lamps grew pale:
Heav'n scarce believ'd the conquest it survey'd,
And saints with wonder heard the vows I made.
Yet then, to those dread altars as I drew,
Not on the Cross my eyes were fix'd, but you:
Not grace, or zeal, love only was my call,
And if I lose thy love, I lose my all.
Come! with thy looks, thy words, relieve my woe;
Those still at least are left thee to bestow.
Still on that breast enamour'd let me lie,
Still drink delicious poison from thy eye,
Pant on thy lip, and to thy heart be press'd;
Give all thou canst — and let me dream the rest.
Ah no! instruct me other joys to prize,
With other beauties charm my partial eyes,
Full in my view set all the bright abode,
And make my soul quit Abelard for God.

Ah, think at least thy flock deserves thy care,
Plants of thy hand, and children of thy pray'r.
From the false world in early youth they fled,
By thee to mountains, wilds, and deserts led.
You rais'd these hallow'd walls; the desert smil'd,
And Paradise was open'd in the wild.
No weeping orphan saw his father's stores
Our shrines irradiate, or emblaze the floors;
No silver saints, by dying misers giv'n,
Here brib'd the rage of ill-requited heav'n:
But such plain roofs as piety could raise,
And only vocal with the Maker's praise.
In these lone walls (their days eternal bound)
These moss-grown domes with spiry turrets crown'd,
Where awful arches make a noonday night,
And the dim windows shed a solemn light;
Thy eyes diffus'd a reconciling ray,
And gleams of glory brighten'd all the day.
But now no face divine contentment wears,
'Tis all blank sadness, or continual tears.
See how the force of others' pray'rs I try,
(O pious fraud of am'rous charity!)
But why should I on others' pray'rs depend?
Come thou, my father, brother, husband, friend!
Ah let thy handmaid, sister, daughter move,
And all those tender names in one, thy love!
The darksome pines that o'er yon rocks reclin'd
Wave high, and murmur to the hollow wind,
The wand'ring streams that shine between the hills,
The grots that echo to the tinkling rills,
The dying gales that pant upon the trees,
The lakes that quiver to the curling breeze;
No more these scenes my meditation aid,
Or lull to rest the visionary maid.
But o'er the twilight groves and dusky caves,
Long-sounding aisles, and intermingled graves,
Black Melancholy sits, and round her throws
A death-like silence, and a dread repose:
Her gloomy presence saddens all the scene,
Shades ev'ry flow'r, and darkens ev'ry green,
Deepens the murmur of the falling floods,
And breathes a browner horror on the woods.

Yet here for ever, ever must I stay;
Sad proof how well a lover can obey!
Death, only death, can break the lasting chain;
And here, ev'n then, shall my cold dust remain,
Here all its frailties, all its flames resign,
And wait till 'tis no sin to mix with thine.
Ah wretch! believ'd the spouse of God in vain,
Confess'd within the slave of love and man.
Assist me, Heav'n! but whence arose that pray'r?
Sprung it from piety, or from despair?
Ev'n here, where frozen chastity retires,
Love finds an altar for forbidden fires.
I ought to grieve, but cannot what I ought;
I mourn the lover, not lament the fault;
I view my crime, but kindle at the view,
Repent old pleasures, and solicit new;
Now turn'd to Heav'n, I weep my past offence,
Now think of thee, and curse my innocence.
Of all affliction taught a lover yet,
'Tis sure the hardest science to forget!
How shall I lose the sin, yet keep the sense,
And love th' offender, yet detest th' offence?
How the dear object from the crime remove,
Or how distinguish penitence from love?
Unequal task! a passion to resign,
For hearts so touch'd, so pierc'd, so lost as mine.
Ere such a soul regains its peaceful state,
How often must it love, how often hate!
How often hope, despair, resent, regret,
Conceal, disdain — do all things but forget.
But let Heav'n seize it, all at once 'tis fir'd;
Not touch'd, but rapt; not waken'd, but inspir'd!
Oh come! oh teach me nature to subdue,
Renounce my love, my life, myself — and you.
Fill my fond heart with God alone, for he
Alone can rival, can succeed to thee.

How happy is the blameless vestal's lot!
The world forgetting, by the world forgot.
Eternal sunshine of the spotless mind!
Each pray'r accepted, and each wish resign'd;
Labour and rest, that equal periods keep;
"Obedient slumbers that can wake and weep;"
Desires compos'd, affections ever ev'n,
Tears that delight, and sighs that waft to Heav'n.
Grace shines around her with serenest beams,
And whisp'ring angels prompt her golden dreams.
For her th' unfading rose of Eden blooms,
And wings of seraphs shed divine perfumes,
For her the Spouse prepares the bridal ring,
For her white virgins hymeneals sing,
To sounds of heav'nly harps she dies away,
And melts in visions of eternal day.

Far other dreams my erring soul employ,
Far other raptures, of unholy joy:
When at the close of each sad, sorrowing day,
Fancy restores what vengeance snatch'd away,
Then conscience sleeps, and leaving nature free,
All my loose soul unbounded springs to thee.
Oh curs'd, dear horrors of all-conscious night!
How glowing guilt exalts the keen delight!
Provoking Daemons all restraint remove,
And stir within me every source of love.
I hear thee, view thee, gaze o'er all thy charms,
And round thy phantom glue my clasping arms.
I wake — no more I hear, no more I view,
The phantom flies me, as unkind as you.
I call aloud; it hears not what I say;
I stretch my empty arms; it glides away.
To dream once more I close my willing eyes;
Ye soft illusions, dear deceits, arise!
Alas, no more — methinks we wand'ring go
Through dreary wastes, and weep each other's woe,
Where round some mould'ring tower pale ivy creeps,
And low-brow'd rocks hang nodding o'er the deeps.
Sudden you mount, you beckon from the skies;
Clouds interpose, waves roar, and winds arise.
I shriek, start up, the same sad prospect find,
And wake to all the griefs I left behind.

For thee the fates, severely kind, ordain
A cool suspense from pleasure and from pain;
Thy life a long, dead calm of fix'd repose;
No pulse that riots, and no blood that glows.
Still as the sea, ere winds were taught to blow,
Or moving spirit bade the waters flow;
Soft as the slumbers of a saint forgiv'n,
And mild as opening gleams of promis'd heav'n.

Come, Abelard! for what hast thou to dread?
The torch of Venus burns not for the dead.
Nature stands check'd; Religion disapproves;
Ev'n thou art cold — yet Eloisa loves.
Ah hopeless, lasting flames! like those that burn
To light the dead, and warm th' unfruitful urn.

What scenes appear where'er I turn my view?
The dear ideas, where I fly, pursue,
Rise in the grove, before the altar rise,
Stain all my soul, and wanton in my eyes.
I waste the matin lamp in sighs for thee,
Thy image steals between my God and me,
Thy voice I seem in ev'ry hymn to hear,
With ev'ry bead I drop too soft a tear.
When from the censer clouds of fragrance roll,
And swelling organs lift the rising soul,
One thought of thee puts all the pomp to flight,
Priests, tapers, temples, swim before my sight:
In seas of flame my plunging soul is drown'd,
While altars blaze, and angels tremble round.

While prostrate here in humble grief I lie,
Kind, virtuous drops just gath'ring in my eye,
While praying, trembling, in the dust I roll,
And dawning grace is op'ning on my soul:
Come, if thou dar'st, all charming as thou art!
Oppose thyself to Heav'n; dispute my heart;
Come, with one glance of those deluding eyes
Blot out each bright idea of the skies;
Take back that grace, those sorrows, and those tears;
Take back my fruitless penitence and pray'rs;
Snatch me, just mounting, from the blest abode;
Assist the fiends, and tear me from my God!

No, fly me, fly me, far as pole from pole;
Rise Alps between us! and whole oceans roll!
Ah, come not, write not, think not once of me,
Nor share one pang of all I felt for thee.
Thy oaths I quit, thy memory resign;
Forget, renounce me, hate whate'er was mine.
Fair eyes, and tempting looks (which yet I view!)
Long lov'd, ador'd ideas, all adieu!
Oh Grace serene! oh virtue heav'nly fair!
Divine oblivion of low-thoughted care!
Fresh blooming hope, gay daughter of the sky!
And faith, our early immortality!
Enter, each mild, each amicable guest;
Receive, and wrap me in eternal rest!

See in her cell sad Eloisa spread,
Propp'd on some tomb, a neighbour of the dead.
In each low wind methinks a spirit calls,
And more than echoes talk along the walls.
Here, as I watch'd the dying lamps around,
From yonder shrine I heard a hollow sound.
"Come, sister, come!" (it said, or seem'd to say)"
Thy place is here, sad sister, come away!
Once like thyself, I trembled, wept, and pray'd,
Love's victim then, though now a sainted maid:
But all is calm in this eternal sleep;
Here grief forgets to groan, and love to weep,
Ev'n superstition loses ev'ry fear:
For God, not man, absolves our frailties here."

I come, I come! prepare your roseate bow'rs,
Celestial palms, and ever-blooming flow'rs.
Thither, where sinners may have rest, I go,
Where flames refin'd in breasts seraphic glow:
Thou, Abelard! the last sad office pay,
And smooth my passage to the realms of day;
See my lips tremble, and my eye-balls roll,
Suck my last breath, and catch my flying soul!
Ah no — in sacred vestments may'st thou stand,
The hallow'd taper trembling in thy hand,
Present the cross before my lifted eye,
Teach me at once, and learn of me to die.
Ah then, thy once-lov'd Eloisa see!
It will be then no crime to gaze on me.
See from my cheek the transient roses fly!
See the last sparkle languish in my eye!
Till ev'ry motion, pulse, and breath be o'er;
And ev'n my Abelard be lov'd no more.
O Death all-eloquent! you only prove
What dust we dote on, when 'tis man we love.

Then too, when fate shall thy fair frame destroy,
(That cause of all my guilt, and all my joy)
In trance ecstatic may thy pangs be drown'd,
Bright clouds descend, and angels watch thee round,
From op'ning skies may streaming glories shine,
And saints embrace thee with a love like mine.

May one kind grave unite each hapless name,
And graft my love immortal on thy fame!
Then, ages hence, when all my woes are o'er,
When this rebellious heart shall beat no more;
If ever chance two wand'ring lovers brings
To Paraclete's white walls and silver springs,
O'er the pale marble shall they join their heads,
And drink the falling tears each other sheds;
Then sadly say, with mutual pity mov'd,
"Oh may we never love as these have lov'd!"

From the full choir when loud Hosannas rise,
And swell the pomp of dreadful sacrifice,
Amid that scene if some relenting eye
Glance on the stone where our cold relics lie,
Devotion's self shall steal a thought from Heav'n,
One human tear shall drop and be forgiv'n.
And sure, if fate some future bard shall join
In sad similitude of griefs to mine,
Condemn'd whole years in absence to deplore,
And image charms he must behold no more;
Such if there be, who loves so long, so well;
Let him our sad, our tender story tell;
The well-sung woes will soothe my pensive ghost;
He best can paint 'em, who shall feel 'em most."

Alexander Pope
Imagem de David Hockney

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Ahh, mist

"A mountain top? A house? A person?
please don’t breathe out again
please don’t put today to sleep
please don’t force it out, don’t
please don’t open your mouth
please don’t believe in the buoyancy of air

and let down a first well-meaning desire
let down a hand held out
a dazzling face
an intoxicating waist
a morning light held close too long
a silently burning scruple

My damp body has already reached noon
my luke-warm heart is already in middle years
I watch the mist scatter into a feeble sunlight
I pass through a thicket of statues
open a book from which almost all type-face has fled
encourage a very small dream"

Xiao Kaiyu


sábado, 13 de setembro de 2008

Leveza

Alma leve, rosto lavado, cabelos ao vento.












Imagem de Cunningham

A doença da curiosidade

Santo Agostinho escreveu que, entre as tentações, uma das mais perigosas era a “doença da curiosidade”, que nos levava a tentar descobrir os segredos da natureza, “aqueles segredos que estão além da nossa compreensão, que em nada nos beneficiarão e que o homem não deve tentar saber.” Foi, em outras palavras, o mesmo conselho que Deus deu a Adão e Eva no paraíso, advertindo-os a não comer o fruto da árvore do saber para não contrair a doença.
Eva – sempre elas – não se agüentou e comeu o fruto proibido. Resultado: o homem perdeu o paraíso da ignorância satisfeita e está, desde então, tentando descobrir que diabo de lugar é este em que o meteram, esta bola girando entre outras bolas num espaço imensurável, sem manual de instrução. Santo Agostinho e outros tentaram nos convencer a aceitar os limites do conhecimento. Tentar compreender mais longe só nos traria perplexidade e angústia e nenhum benefício. Mas a doença já estava adiantada demais.
A fase mais aguda da doença da curiosidade chegou com a inauguração, esta semana, num subterrâneo na fronteira da Suíça com a França, do tal acelerador gigante que jogará prótons contra prótons em condições inéditas para tentar produzir a origem de tudo, liberar uma subpartícula atômica que até agora só existe em teoria e chegar mais perto de descobrir como funciona o universo.
Quer dizer, os descendentes de Adão e Eva pretendem levar a rebeldia do casal ao máximo e espiar por baixo do camisolão de Deus. Segundo alguns, o que o novo acelerador também pode trazer é um castigo terminal pela desobediência humana: o desaparecimento num buraco negro não só dos cientistas envolvidos e de alguns suíços e franceses na superfície, mas do mundo todo. Como você e eu, que não temos nada a ver com a história, atrás.
O cataclismo é improvável, mas mesmo que a insubmissão do homem não seja punida, resta a outra questão posta por Santo Agostinho, a do beneficio. Que proveito, salvo para a vaidade científica, trará descobrir o que pretendem? Quanto mais se sabe sobre o funcionamento do universo mais aumentam a perplexidade e a angústia por não saber mais, por jamais se poder compreender tudo – pelo menos não com este cérebro que mal compreende a si mesmo.
Mas a toxina daquela fruta era forte e ainda age no organismo. E a doença é incurável.

Luis Fernando Veríssimo


Imagem de Eisenstaedt

domingo, 7 de setembro de 2008

Livro multimídia

Ao ler uma matéria sobre o futuro multimídia do livro confesso que torci o nariz e pensei: não, imagine deixar de segurar um bom livro, apreciar a textura do papel, me aconchegar confortável na minha poltrona favorita e lá ficar por horas com uma das melhores companhias que podemos ter, além da boa música.
Minha relação com os livros vem da infância, do costume dos meus pais me levarem às livrarias, me apresentarem aos clássicos, orientarem-me sobre os escritores recentes. Sou dos que apreciam uma boa livraria e dedicam tempo considerável a esse mundo a parte. Tenho respeito pelos livros, manuseio-os com cuidado, não me sinto bem em escrever em suas páginas e mantenho por perto um bloquinho de post-it para marcar o texto que eu queira reler, ou, pelo qual eu tenha especial apreço.
Guardo belos livros encadernados, com mágicas histórias e figuras incríveis para os filhos que meu filho terá e considero esta uma das melhores heranças.
Aprendi a doar livros e o faço com prazer, como se uma pequena parte minha seguisse junto às páginas que trarão encantamento a quem os receber.
Mas essa matéria que descreve as vantagens dos audiobooks, dos e-book reader, dos livros online da editora inglesa Penguin, dos e-books, não importa o meio: ipod, laptop, palm, PSP, vale tudo para apreciar com facilidade alguns poucos capítulos, é certo, pois não consigo imaginar Guerra e Paz na tela do meu celular. Olhei os armários com livros que tenho em casa. Ocupam espaço, eu sei, demandam tempo para limpeza e organização – mantenho-os arrumados nas estantes por autores, temas, idiomas. Pensei nas minhas viagens e no que não falta em minha bolsa: água, ipod e um bom livro, assim como me lembrei das vezes, nas quais, ao terminar o livro que eu lia, evitei deixá-lo no meu destino e o trazia de volta, sempre com um tantinho de excesso de peso na bagagem e o risco de pagar a tarifa apropriada.
Por sua vez, o e-book reader consegue armazenar duzentos livros, possui tela fosca, que não emite luz e tenta reproduzir uma folha de papel, além das letras que parecem bem maiores e mais compatíveis com as lentes multifocais.
Sim, durante uma viagem eu apreciaria um e-book reader e não mais me preocuparia com o peso dos livros, mas essa seria, até agora, a única exceção que me permito.

sábado, 6 de setembro de 2008

Antônio Osório

Gratidão que nem sabe
a quem deve ser grata.

Por um novilho, um poldro
vagueando na pastagem,
um farol, uma escada magirus,
uma vasilha de leite, de vinho

Por um beijo, uma sonda
que não regressa de Vênus,
uma safra, uma ceifa
de amantes.

Por ser crente e descrente,
matricial e fiel
ferozmente a si próprio.

Ao início, ao que foi
expurgado, à placenta, grato.

* * *

Não gosto deste perfil de gafanhoto.
Constante sou, trepido, usam-me,
servo da gleba. Rasgo e acamo,
tenho um veio de dolorosa, serena
transmissão. Custa levar de rojo
uma vaca à cova. Esmaguei já
uma perna. Detesto o peso do reboque.
Cinco anos e ainda não percebo estas
sujas peças que rodam em mim.
A escavadora, ao menos, uiva
(amo-a). Não me agrada a sucata.

* * *

É triste não possuir uma casa de sementes.
Não adianta amar essas partículas ali
ociosas, nem desejar que nidifiquem sem granizo
e irrompam como a chama de uma vela.
É triste pagar um preço pelo que há-de
nascer,
que o bersim perca a cor alazã penetrando
na terra
e o trevo da Pérsia alimente a boca das reses.

É triste que não recusem essa densa,
pródiga,
obstinada servidão, a vitalidade apaixonada
pelo sol,
e não façam, como um camponês, as suas
contas,
exigindo a Deus e aos homens o salário da
maquinação.

* * *

Se eu fosse uma coisa, amaria ver-me
como comboio-correio. Longo e nocturno,
devassando o interior, contemplado
de fugida por pinhais e estrelas,
lobos, penhascos e embruxados.
Bom parar em todas as estações.
Cabecear de sono, beber vinho, ser
banco de campônios, crianças,
contrabandistas.
Aldeã que reza, desdentada e solícita.
Em cada carruagem existe sempre
um voluntário palhaço que golfa
sua alegria: coroá-lo com o clarim
do galo. E deixar em todos os lugares
as ânforas de barro das paixões
(quase sempre mal-avindas, fortuitas,
temerosas): colaborar, encher
a inocente mala do carteiro.

* * *

Ainda me acolho, Pai,
à tua madressilva.
Ali tens a passiflora,
não envelheceu.
O cedro grande, maior ainda.
O forno, dedadas
expungidas pelas portas.
A buganvília, não esqueço,
é preciso cortá-la.
A Mãe não está nem volta.

* * *

Criança que despeja um grilo,
pata a pata,
víscera a víscera,
da sua pequeníssima alma.

E não há quem refaça
o grilo e a criança.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Trama

Bateu com firmeza na mesa e berrou que não seria de outro jeito:
- Não será do seu jeito!
Mas que jeito torto é esse, quem nem jeito é.
- Quem você pensa que é? O centro do universo?
Quem, eu? Mas não é no meu entorno que orbitam os satélites, você incluso, e tudo acontece. Não é o meu manipulado e dissimulado comando que cegamente é obedecido.
O estômago embrulhou mais quando surgiu a palavra cartilha.
Espuma no canto da boca, tsunami de palavras que carregou tudo o que encontrou pela frente. Cataclismo pleno de pesadas, dissuadidas e descabidas culpa e responsabilidade.
- Olha para mim.
Trovão.
- Olha para mim.
Desconforto.
- Olha para mim.
Não consegue.
A neurose está em contrariar a natureza e o sentimento que não tem controle, nem nunca terá.


Imagem de Eugene Atget

sábado, 30 de agosto de 2008

Antonio Cicero

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigilia por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:

Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

O fim da teoria do leão

Os números finais da Olimpíada costumam provocar o que pode ser chamado de sociologia de resultados. Surgem teses sobre as causas sociais e políticas de triunfos e fracassos e a quantidade de medalhas ganhas passa a ser um medidor de virtudes nacionais. Mas, como toda a sociologia instantânea, esta tem dificuldades em lidar com o que não é óbvio. É o óbvio que ganham mais medalhas os países mais bem alimentados e ricos, que podem investir mais em esportes e preparação de atletas. Se uma Cuba ganha medalhas em desproporção ao seu poderio econômico e à sua dieta alimentar, a explicação também é óbvia. Países socialistas tradicionalmente usam o esporte como propaganda, seu investimento desproporcional é na competição ideológica. Mas outras exceções ao óbvio desafiam as teses. E muitas vezes levam a fantasias, como a teoria do leão.
Sociólogos de ocasião desenvolveram a tese de que o sucesso de atletas africanos em corridas de fundo devia-se ao fato de terem se criado num ambiente em que poder fugir do leão era condição de sobrevivência. Uma condição que se sobrepunha a todas as outras. O leão predador, claro, quando não era um leão de verdade, era uma metáfora para todos os perigos da floresta que obrigavam as pessoas a terem pernas ligeiras e agilidade inata, para não morrer. Havia vestígios da teoria do leão na velha idéia de que a ascendência africana explicava a habilidade dos brasileiros para o futebol, que ninguém no mundo igualava. Qualquer jogada do Pelé teria, entre os seus antecedentes remotos, um meneio para escapar do leão.
A teoria do leão, que é uma teoria sobre a inevitabilidade, pois diz que um certo tipo de ambiente só pode produzir um certo tipo de atleta, sofreu um duro golpe quando apareceu, numa Olimpíada de inverno, aquela equipe de trenó – da Jamaica! A importância do leão na vocação para o futebol é desmentida cada vez que se vê um Messi fazer em campo o que se esperava que um Ronaldinho fizesse. E se ainda fosse preciso um dado para mostrar como a teoria do leão é furada, basta lembrar que o país tem a maior costa contínua e algumas das piores estradas do mundo, produz mais campeões de automobilismo do que de natação.
Não fomos tão mal assim na Olimpíada. Nos casos em que poderíamos ter ido melhor, perdemos para o nosso emocionalismo. E ganhamos de todos nas categorias choro compulsivo e lamentação em equipe. No fim – esta é a minha teoria - os Jogos Olímpicos são entre os de sangue quente e os de sangue frio. Os de sangue frio ganham sempre, mas os de sangue quente são muito mais simpáticos.

Luis Fernando Veríssimo

domingo, 24 de agosto de 2008

A dança dos sapatos brancos

Médicos e exames, alguns inéditos e invasivos realizados após preparo e anestesia.
Cinco especialistas distintos, cada um com seu objetivo e dá-lhe mais exames, o desta semana antecedido por repouso de trinta minutos no pronto-socorro. Por terem ouvido a palavra câncer se esforçam para me convencer que o raio não cai duas vezes no mesmo lugar, mas, as pesquisas são realizadas com esmero.
Os dois exames que exigiram a presença obrigatória de acompanhante e foram realizados durante duas horas no hospital, sem que eu nada sentisse por estar anestesiada, obrigaram-me a chamar meu filho. Só nosso bom humor para aliviar a chatice que começou com a assinatura de uma declaração que descrevia as piores conseqüências que poderiam ocorrer – e me fez pensar em elaborar e anexar meu testamento, além da assinatura de duas testemunhas. Tem que ter muito senso de humor para manter a leveza e dissipar o medo.
Gostei de duas médicas sérias e competentes, mas não menos humanas e atenciosas e as escolhi para me acompanharem durante e após os tratamentos. Ambas têm a visão do todo – mente e corpo – e num alento honesto me tranqüilizaram e retiraram boa parte do que ia aos ombros, com o reconhecimento de que foi demais.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Interesse público

Foi estranha a atitude do policial militar que, do portão de um dos comandos localizado em movimentada avenida, segurava prancheta com dois blocos de multa e se divertia em anotar os dados de todos os carros que tentavam estacionar no supermercado em frente. Não avisou ao aplicar as sanções, não considerou que os carros entravam no estacionamento, não organizou a situação, não foi justo, nem equânime.
Não agiu, como deveria ter agido, nos dias que todos ficamos com medo de sair de casa e mesmo assim saímos, porque remédios deveriam ser comprados nas farmácias e os cães necessitavam de seus passeios. Naquela ocasião, cones imensos impediam que qualquer um se aproximasse e não havia ninguém no portão para ajudar, transmitir alguma segurança, ou, até mesmo multar. Saiu no caderno Metrópole do Estadão que 18% das multas em São Paulo são aplicadas por policiais militares, que triplicaram as autuações. De janeiro a junho deste ano, consta na matéria, 2,3 milhões de multas foram aplicadas na capital, 16,5% a mais do que nos seis primeiros meses de 2007. Essa ação deve estar de acordo com o interesse público, imagino, mas não é só isso.


Imagem de Eisenstaedt

Olimpíada - 2008

A vitória de César Cielo Filho, numa das provas mais significativas dos jogos, os 50 m de nado livre, tornando-o o nadador mais veloz de um mundo que adora a rapidez e inscrevendo o Brasil de modo definitivo no panteão do esporte mundial, trouxe de volta – ao menos para os brasileiros que competem seminus – o “espírito Olímpico” que, com a crise entre a Rússia e a Geórgia e a nossa própria dura realidade social, nos levam para bem longe dos “ninhos de pássaro” e do “cubo d’água” (cujo teto, por sinal, tem recortes idênticos aos do casco de uma tartaruga). No fundo, toda disputa esportiva produzida com ênfase dramatiza positivamente o espírito capitalista da competição justa, na qual não vence quem nasceu aqui ou ali, pertence a certo partido, é branco ou carrega o “nome de família”, mas teve o melhor desempenho. As lágrimas do campeão comovem porque exprimem a sua humanidade. Cielo Filho foi o grande campeão, mostrou-se dono mais absoluto de uma técnica de corpo e maestro de uma habilidade, vontade e poder físicos incomparáveis, mas ele não esqueceu que a medalha conquistada pertencia também a uma rede de laços que trazia dentro do seu coração. Suas lágrimas, ao ouvir o hino nacional, foram a aliança que realizou com todos nós que nos transformamos em seus pais e irmãos, graças ao espírito das disputas tão transparentes quanto a piscina na qual foi vencedor. Por ele, valeu termos ido pra China.

Roberto da Matta

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Dorival Caymmi

Música, sempre a essencial música.
Foi com meu pai que aprendi a gostar de Dorival Caymmi e a me encantar com o jeito tão especial do inigualável do mestre.
O ateniense orgulhoso de sua origem e tão encantador quanto sábio – com sua belíssima voz – cantava para mim trechos de Marina morena e seu rosto pintado a estragar a beleza que Deus lhe deu.
Vinte dias antes da morte de Caymmi, assisti a uma entrevista sua e confirmei toda a admiração que sinto por ele. "Ele tem a cara da voz. Aquela cara não podia ter outra voz, aquela voz não podia ter outra cara."

Insubstuivel.
E assim adormece esse homem que nunca precisa dormir para sonhar.


Marina, morena
Marina, você se pintou
Marina, você faça tudo
Mas faça um favor
Não pinte este rosto que eu gosto
Que eu gosto e que é só meu
Marina, você já é bonita
Com o que Deus lhe deu
Me aborreci, me zanguei
Já não posso falar
E quando eu me zango, Marina
Não sei perdoar
Eu já desculpei tanta coisa
Você não arranjava outro igual
Desculpe, Marina, morena
Mas eu tô de mal.

* * *

João Valentão é brigão
Pra dar bofetão
Não presta atenção e nem pensa na vida
A todos João intimida
Faz coisas que até Deus duvida
Mas tem seu momento na vida
É quando o sol vai quebrando
Lá pro fim do mundo pra noite chegar
É quando se ouve mais forte
O ronco das ondas na beira do mar
É quando o cansaço da lida da vida
Obriga João se sentar
É quando a morena se encolhe
Se chega pro lado querendo agradar
Se a noite é de lua
A vontade é contar mentira
É se espreguiçar
Deitar na areia da praia
Que acaba onde a vista não pode alcançar
E assim adormece esse homem
Que nunca precisa dormir pra sonhar
Porque não há sonho mais lindo do que sua terra.

* * *

No tabuleiro da baiana tem
Vatapá, Carurú, Mungunza tem Ungu pra io io
Se eu pedir você me dar o seu coração, seu amor de ia ia
No coração da Baiana também tem
Sedução, cangerê, ilusão, candonblé pra você
Juro por Deus, pelo Senhor do Bonfim
quero você baianinha inteirinha pra mim
E depois o que será de nós dois?
Seu amor é tão fulgás enganador
Tudo já fiz, fui até no cangerê
Pra ser feliz, meus trapinhos juntar com você
E depois vai ser mais uma ilusão
no amor que governa o coração

* * *

Só louco amou como eu amei
Só louco quis o bem que eu quis
Ah, insensato coração
Porque me fizeste sofrer
Porque de amor pra entender
É preciso amar, porque só louco, louco.