sábado, 27 de setembro de 2008

Luís Miguel Nava

"O mar está-nos no corpo; enquanto alguém
a quem o coração serve de rei dispõe no tabuleiro as outras peças

rebenta-lhe na mão; há entre as peças
e o mar cumplicidades de que só quem joga estima o peso em cada lance."

* * *

"O corpo dividido em duas partes fechadas
à chave uma na outra, avanço num duplo coração como se fosse
ao mesmo tempo num só barco por dois rios."

* * *

"Cresceram-me entre os ossos já as primeiras ervas.
Talvez dos descampados que me vêm
do espírito acabar à boca dos sentidos
por fim surjam aqueles que quando escavam
o fazem como se avançassem
assim para uma vida mais autêntica.
Terão o tempo nas mãos como uma enxada.
Brilhar-lhes-ão nas pás
pedaços do meu corpo que respiram."

* * *

"Começam-nos as trevas a romper
a carne, comparáveis
a neve que do céu
caísse ensanguentada

ou pedra que, ao tombar
num lago, o abrisse
em sucessivos círculos, alguns
dos quais já fora de água, em plena vida,

alguém
no meio da paisagem
empunha um calorífico

enquanto eu, que de roupa
não trago mais que um lenço,
com ele cubro a cabeça para não morrer,

aqui ninguém ignora
que os lagos gelam a partir das margens
e o homem a partir do coração,

que a luz
ascende do vazio
e tudo o que nos resta mais não é
que um sol sem crédito
num céu desafectado,

envolvem-nos as trevas
os ossos, dir-se-ia
que a própria morte
nos serve aqui de pele, como a um morcego."

Luís Miguel Nava

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