sábado, 6 de setembro de 2008

Antônio Osório

Gratidão que nem sabe
a quem deve ser grata.

Por um novilho, um poldro
vagueando na pastagem,
um farol, uma escada magirus,
uma vasilha de leite, de vinho

Por um beijo, uma sonda
que não regressa de Vênus,
uma safra, uma ceifa
de amantes.

Por ser crente e descrente,
matricial e fiel
ferozmente a si próprio.

Ao início, ao que foi
expurgado, à placenta, grato.

* * *

Não gosto deste perfil de gafanhoto.
Constante sou, trepido, usam-me,
servo da gleba. Rasgo e acamo,
tenho um veio de dolorosa, serena
transmissão. Custa levar de rojo
uma vaca à cova. Esmaguei já
uma perna. Detesto o peso do reboque.
Cinco anos e ainda não percebo estas
sujas peças que rodam em mim.
A escavadora, ao menos, uiva
(amo-a). Não me agrada a sucata.

* * *

É triste não possuir uma casa de sementes.
Não adianta amar essas partículas ali
ociosas, nem desejar que nidifiquem sem granizo
e irrompam como a chama de uma vela.
É triste pagar um preço pelo que há-de
nascer,
que o bersim perca a cor alazã penetrando
na terra
e o trevo da Pérsia alimente a boca das reses.

É triste que não recusem essa densa,
pródiga,
obstinada servidão, a vitalidade apaixonada
pelo sol,
e não façam, como um camponês, as suas
contas,
exigindo a Deus e aos homens o salário da
maquinação.

* * *

Se eu fosse uma coisa, amaria ver-me
como comboio-correio. Longo e nocturno,
devassando o interior, contemplado
de fugida por pinhais e estrelas,
lobos, penhascos e embruxados.
Bom parar em todas as estações.
Cabecear de sono, beber vinho, ser
banco de campônios, crianças,
contrabandistas.
Aldeã que reza, desdentada e solícita.
Em cada carruagem existe sempre
um voluntário palhaço que golfa
sua alegria: coroá-lo com o clarim
do galo. E deixar em todos os lugares
as ânforas de barro das paixões
(quase sempre mal-avindas, fortuitas,
temerosas): colaborar, encher
a inocente mala do carteiro.

* * *

Ainda me acolho, Pai,
à tua madressilva.
Ali tens a passiflora,
não envelheceu.
O cedro grande, maior ainda.
O forno, dedadas
expungidas pelas portas.
A buganvília, não esqueço,
é preciso cortá-la.
A Mãe não está nem volta.

* * *

Criança que despeja um grilo,
pata a pata,
víscera a víscera,
da sua pequeníssima alma.

E não há quem refaça
o grilo e a criança.

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