domingo, 29 de junho de 2008

Conversa de criança

Encantado, o menino conquista a condição de usar pela primeira vez o telefone. A orgulhosa mamãe sugere que a ligação inaugural seja para a querida tia Iolanda Maria - professora concursada do colégio estadual São Benedito, que aproveita sua aposentadoria em Santos, no litoral paulista. Com os olhinhos brilhantes o ansioso garoto se esforça para não errar a série de números do telefone da tia. Céus! Qual será a primeira frase dita? Alô, atende Iolanda Maria. Liguei para dar um beijinho, diz o guri. A mãe se emociona e deixa rolar uma lágrima. Entre gostosas risadas o garotinho de três anos repete a frase para manter a magia: liguei para dar um beijinho.

sábado, 28 de junho de 2008

Sábado de paz

Sábado tão gostoso e típico de outono, com o sol brilhante e o clima ameno.
Encontrei pavios para minha lamparina, novas mudas de plantas, um livro que há tempos queria e ganhei uma agenda. Tudo isso a pé, na companhia de boa música, que me faz esquecer a vida e mexer as pernas com ritmo enquanto espero os sinais abrirem.
Gosto muito de andar à vontade, curtir mais os lugares e descobrir coisas novas, jamais imaginadas quando uso o carro. Enquanto caminho faço autoterapia e deixo em cada passo uma parte do que pode entristecer ou incomodar.
No almoço quis manter o mesmo clima e não abri mão da paz que senti durante a manhã. Depois, apesar do soninho gostoso que vem quando conseguimos relaxar de verdade, ainda fui ao supermercado para comprar algumas gostosuras especiais para o almoço que quero preparar amanhã.
Estava no corredor dos sabonetes, desodorantes e lencinhos de papel, a ler o rótulo do mais novo creme para enxágüe (eu não gosto de usar muita coisa no meu cabelo, salvo um bom xampu) quando passou uma mulher com um rostinho conhecido
- Você não é a Ana?
Pois é, a Ana, que está ao meu lado na foto oficial da missa de formatura na frente da Catedral da Sé e que aparece nas minhas imagens da colação de grau no Anhembi.
Quer dizer que tiramos fotos juntas na porta da igreja?
Incrível como temos a capacidade de desconsiderarmos o tempo – lá se vão vinte e cinco anos! - e retomarmos o mesmo papo, com a única diferença que hoje, as crianças não são mais tão crianças e estão mais velhas do que nos éramos quando concluímos o curso de Direito.
Ana é mais séria do que eu e parece bem mais tímida. Mas ela era da turma do fundo e eu da turma da frente, dos que não ficavam de dependência. Lembro bem que fiquei encantada porque ela tinha uma escola de balé e ensinava crianças especiais.
Foi nisso também que pensei enquanto conversávamos: Gostar tanto do curso fez com que aqueles cinco anos fluíssem rapidamente. Ainda mais com o fim da minha rebeldia contra a física, a química e a matemática, abandonadas no segundo grau e no fundão bagunceiro.
- Você se lembra da sisudez que nos impuseram na formatura e da anarquista bomba de confetes que soltaram no palco?
- Na minha primeira audiência o juiz foi o professor Oscarlino.
- Ah, o professor Oscarlino. Saudade.
- Lembra do Edu, do Tião e da Vera? A Vera casou com o Zé que virou deputado do PT.
Educado o rapaz do supermercado pediu para que movêssemos nossos carinhos para que ele pudesse limpar em baixo das gôndolas dos produtos de higiene, de onde saíram muitas cebolas. Risadas. Aquelas cebolas rolaram do corredor ao lado.
Somos filhas únicas, mães, advogadas, mulheres e vizinhas que fazem compras no supermercado do bairro. Esta vida é muito gostosa. E quem precisa de mais?


Imagem de Elizabeth Peyton

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Escritos paridos

Vivi a intensa fase Marguerite Duras e li toda a sua obra em francês e português. Amei o extasiado período Marguerite Yourcenar, a belga que foi a primeira mulher eleita para a Academia Francesa de Letras e me conquistou para sempre com Memórias de Adriano. Gostei da sul-africana Nadine Gordimer e me entreguei a várias poetizas que me ensinaram muito. Agora, aprendo Dóris Lessing.
A mulher escreve com o ventre. Com o coração e o ventre.

Uma brasileira

Morreu a antropóloga Ruth Cardoso. Não digo morreu a ex-primeira-dama, título tão pomposo quanto vazio, mas uma mulher de personalidade, educada e culta. Várias vezes a vi nas caminhadas que costumo fazer - ela era alta, séria e compenetrada. Parecia até um pouco solitária.
O que me deixou verdadeiramente encantada foi seu comportamento gentil, há sete anos, em Brasília: Noite de sexta-feira, Teatro Nacional, uma única apresentação do balé Kirov.

Após o espetáculo minha mãe - minha baixinha e tão elegante mãe, então, com seus oitenta e dois anos - e eu estávamos no elevador do teatro, que parou no andar do camarote presidencial de onde saíam dona Ruth, outra senhora e um despreparado segurança.
Afoito e desajeitado ele ameaçou tentar tirar-nos do elevador - o que lhe renderia sério transtorno pela imediata defesa que eu faria de minha mãe – mas dona Ruth rapidamente o impediu e desceu conosco.
Nos onze anos que vivi em Brasília, cansei de saber e presenciar atitudes abusivas, desonestas e mal educadas dos que compartilham do poder.
Corrompidos, ainda perdem o mínimo de respeito e polidez. Não foi o caso.
É uma pena, de certa forma fiquei triste com a sua morte.

domingo, 15 de junho de 2008

Temos medo de nos apaixonarmos demais e fracassar na produção

Certas coisas, ah, certas coisas parece que perderam seu melhor com o passar do tempo, por conta das atitudes que tomamos, todas baseadas no medo. Temos medo de compromisso, temos medo de nos encontrarmos no outro, temos medo da verdade e temos muito medo de amar e perder o controle.
Por isso, algumas ações continuam tão sem propósito quanto o vazio eu te amo dito a toa e a tão banal reação à perda do poder – ou à negativa decorrente do reconhecimento do sentimento refratário e falso – com a não satisfação dos desejos pela simples satisfação dos desejos. Ato contínuo e tão previsível do agente desprovido de qualquer bem querência: a ofensa. A autenticidade vira suburbana, a honestidade provinciana e mulheres que sabem exatamente o que querem e sabem dizer exatamente o que querem são tratadas como anormais e até – pasmem! - chantagistas. E o amor? Bom, o amor que era sem ser, dito e redito, falece sem nascer. Eternos garotos – maus garotos – acreditam iludir. Outro dia ouvi de uma amiga uma frase batida, ou não, pouco importa, mas certamente vulgar e triste pela situação que encerra: O verdadeiro canalha oferece algo à mesa e exige a cama. Há brincadeiras que não mudam (seus protagonistas insistem em não mudar) e a imaturidade emocional, às vezes, prevalece.
Certas meninas cresceram, mas alguns meninos não. “Mas meu bem, deixa de ser alienada...”

Quando eu era jovem, nos anos 60/70, o amor era inda um desejo romântico e, mais que isso, um sonho político contra o “sistema’, uma busca de liberdade contra as regras da caretice, um “desregramento dos sentidos,”, diferente deste amor de mercado, amor transgênico, geneticamente modificado – este “fast love” de agora.
O amor virou um cultivo da intensidade contra a eternidade. É o fim do “happy end”. E, no entanto, era difícil amar completamente.
Falo isso porque sou do tempo em que as namoradas não “davam”.
Os meninos de hoje vivem em haréns. Esses garanhões privilegiados - que eu tanto invejo – torcem o nariz para deusas de 18 anos, entediados, enquanto, no meu tempo, as meninas, com pavor de engravidar, deixavam quase tudo, menos o principal, e os rapazes iam para casa com dor nos rins e perpetravam masturbações feéricas.
O medo era a “barriga”, a gravidez. Mas, mesmo depois da pílula, persistia o terror de uma liberdade assustadora; havia um forte apego a vestidos de debutantes, ao organdi branco, aos buquês e véus de noiva esvoaçando nas almas virgens. Quase ninguém “dava”. As poucas liberadas eram vistas pelos rapazes como uma atração cortada de preconceitos. Quantos teriam coragem de casar com elas? Lembro de uma menina na universidade que “dava”, mas o fazia num transe meio epiléptico, sofrendo com olhos virados e choros, do qual acordava sem lembrar de nada.
Não havia motéis, então. Namorávamos em qualquer buraco: terrenos baldios, cantos escuros da noite; eu mesmo já namorei dentro de uma grossa manilha encalhada na praia de Ipanema.
Quantas meninas eu tentei empurrar para dentro de apartamentos emprestados, mas que empacaram na porta!... Quantas unhas quebradas em sutiãs inacessíveis, quantas palavras gastas com complexas cantadas, apelando para Deus, para Marx, para tudo, desde que as saias caíssem e as calcinhas voassem... E meu caso foi pior, pois minha primeira namorada não era mais virgem – uma raridade.

Eu, que vivera até então na horrenda divisão entre bordéis e romances platônicos, achei que ia viver meu primeiro amor adulto. Mas, a namorada resolvera “reconstituir” neuroticamente sua virgindade, recusando-se a repetir comigo seu “erro” do passado. Arrependera-se de ter cedido uma única e sangrenta vez ao canalha que me anteceder e, com lágrimas e confissões na igreja, queria reconquistar a pureza perdida. Ou seja, para mim foi o calvário do coito interrompido. No carro do pai dela trocávamos carinhos sôfregos, apavorados, com desespero e orgasmos no ar.
O apartamento era a única esperança; se a menina entrasse, depois era mole. O problema era entrar. “Não adianta, meu bem, aí eu não entro!”
Eu, jovem comuna, tinha a chave de um “aparelho” secreto do Partido, ali em Copacabana – um conjugado com um sofá-cama rasgado e o algodão aparecendo, onde eu, da base cultural da UNE, queria tentar um amor adulto, mas com triplo medo:culpa política, medo de broxar e de ser apanhado pelos comunas caxias.
“Não entro!” – gemia minha namorada. Eu buscava argumentos que uma de Sartre e Simone até a revolução.
“Mas, meu bem... deixa de ser alienada... A sexualidade é um ato de liberdade contra a direita...” E ela: “Não entro! Isso seria também uma indisciplina pequeno-burguesa...”
“Mas, meu anjo – eu suplicava – você tem que assumir que não é mais virgem!”
E ela, com boquinha de nojo: “Eu sabia que você ainda ia jogar isso na minha cara!” E fugia pelas escadas.
Por isso, muitos homens casados viviam em casas de rende-vouz, como se dizia, e jovens corriam atrás de empregadas tristes e conformadas.
Éramos assim em 1962. Aos poucos melhorou... Em 63, conheci a primeira paixão, com vertigem e cegueira, pois, mesmo sem pílula e sem recuos, ela adentrou gloriosamente o “aparelho” do Partidão e, em meio a livros da Academia de Ciências da União Soviética, sob um pôster de Lenine e uma reprodução dos girassóis de Van Gogh, se entregou a mim com amor e coragem. Lembro que, embaixo, na loja de discos, tocava o sucesso da época – Chove chuva, chove sem parar... do Jorge Ben. Até hoje, guardo na alma essa tarde revolucionária.
Um dia, ela me largou por outro e eu virei um frágil comunista em pranto no Rio, pensado naquela poesia de Maiakosviki: “Venha de volta para meus braços desajeitados, amor... Não é por mum que tenho ciúmes; apenas me enciúmo pela Rússia Soviética...”
Sofri também por aquela ingratidão contra um militante de esquerda como eu, trocado por um engenheiro de direita da PUC, feliz possuidor de um reluzente Volks cor-de-laranja.
Hoje, o ritmo do tempo e do dinheiro acelerou o amor, matando seu mistério. Os casos duram uma semana, o amor tornou-se um software que pilotamos, com o controle das emoções programadas. Temos medo de nos apaixonarmos demais e de fracassar na produção.
Mas se a história atual parece não ter sentido, ainda querermos encontrar sentido para a vida, claro, e o amor é uma ilusão sem a qual não podemos viver. Mesmo denegada, a sensação de eternidade que a paixão provoca é um desejo geral, do cafajeste à perua.
Por isso, lembro aqui um poema lindo de Ferreira Gullar sobre o amor:
“É um lampejo que surgiu no mundo
essa cor
essa mancha
que a mim chegou
de trás de dezenas de milhares de manhãs
e noites estreladas
como um puído aceno humano
mancha azul que carrego comigo
como carrego meus cabelos
ou uma lesão oculta onde ninguém sabe.”


Arnaldo Jabor

Imagem de Bresson

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Congestionamentos

A velocidade média dos veículos em São Paulo no horário de pico da tarde despencou 32% nos últimos dez anos, passando de 25 km/h, em 1998, para 17 km/h, em maio de 2008. O percentual é maior do que o crescimento da frota paulistana no mesmo período, que subiu de 4,7 milhões para 6,1 milhões. Uma das hipóteses para essa piora está no alto número de interferências registradas
no trânsito.

A partir de agosto, 400 motocicletas serão distribuídas para auxiliar o serviço de atendimento móvel de urgência. As 'motolâncias' de 250 cilindradas serão dirigidas por auxiliares de enfermagem, treinados para dar atendimento rápido até a chegada da ambulância.


Para mim é inédito todos os dias enfrentar o trânsito louco e estressante. Não, não vivi em outro planeta, explico: Quando trabalhei na avenida Paulista ia a pé de casa e em Brasília trânsito era palavra desconhecida.
Falta paciência, sobra irritação e surge o cansaço. É absurdo perder tantas horas preciosas do dia, no meio de carros, ônibus, caminhões e motocicletas - se bem que as motos passam rapidinhas - e ainda dividir espaço com caçambas.
Música. Sem boa música é impossível agüentar. Uma garrafa de água ao lado e algumas besteirinhas gostosas para distrair também são essenciais. Inevitável o celular, que virou instrumento de navegação: Você já passou pela Bela Cintra? Como está o trânsito por lá? E a Brasil? Pego a Estados Unidos e sigo pela Rebouças?
Um carro parado na pista da direita causa lentidão nas outras três pistas. Reunião básica e informal de policiais com motos e viaturas paradas de qualquer jeito, em divertida conversa, pára as quatro pistas. Passeata? Céus! As passeatas param uma boa parte da cidade - que nova mania é essa de fazerem passeatas nas tardes de sextas feiras?
Carros estacionados em locais errados, caminhões de entregas em horários impróprios, motoristas-tartarugas, motoristas-indecisos, motoristas-agressivos, motoristas que querem levar vantagem em tudo. Antes, eram os garotos desmiolados que dirigiam como se estivessem em algum rali; hoje, são as garotas desmioladas que dirigem como kamikazes. Motoristas infelizes que acreditam que o tamanho do carro é documento; os que dirigem caravelas e necessitam de duas pistas para entrar à direita ou à esquerda; alguns taxistas que perderam a noção do perigo e os motoristas rurais - que tal levarem seus imensos veículos utilitários, que ocupam tanto espaço, para fazendas, chácaras e pacatas cidades do interior? Sirene de ambulância nada representa, carroceiros e carroceiras dividem o espaço como podem e ousados ciclistas se arriscam. Pedestres nervosos e atirados, cachorros soltos, caos.
Se não bastasse tudo isso, ainda existem os ‘amarelinhos’ que adoram anotar seus blocos de multas. O sinal logo atrás do agente de trânsito não funciona, os motoristas estão desorientados, a confusão afeta as ruas da região, mas ele não larga a caneta e o papel para organizar o movimento, como deveria fazer. Foram treinados para multar, não para orientar. Alguns se satisfazem em multar.
O rodízio municipal de carros afeta nossa vida e atrapalha nosso relógio biológico: Acorde uma hora mais cedo, torça para não encontrar algum congestionamento e fique com sono pelo resto do dia. Por conta do rodízio e do trânsito entendi que é necessário descobrir lugares estratégicos - de preferência com boas salas de cinema, livrarias e restaurantes - para esperar, ao menos quatro horas, enquanto o tempo de rodízio prevalece.
Diariamente vejo o pouso do helicóptero cinza no alto do prédio de um Banco. O mesmo segurança, de terno escuro e rádio na mão, recebe o passageiro e lhe segura a pasta. Por sinal, é um prédio com sete andares, cinza e quadrado que mais parece a base do heliporto. Deve ser a base do heliporto. O helicóptero decola, segue rumo à Marginal e os carros que estão na avenida não se moveram sequer um centímetro.
Grudar no carro da frente, negar passagem, ficar hiper atenta e descobrir-se agressiva. Sem dúvida é um desafiador exercício de paciência e educação.
Não faço esforço para enfrentar o trânsito, mas para não perder a suavidade e a gentileza apesar do trânsito.