Certas coisas, ah, certas coisas parece que perderam seu melhor com o passar do tempo, por conta das atitudes que tomamos, todas baseadas no medo. Temos medo de compromisso, temos medo de nos encontrarmos no outro, temos medo da verdade e temos muito medo de amar e perder o controle.
Por isso, algumas ações continuam tão sem propósito quanto o vazio eu te amo dito a toa e a tão banal reação à perda do poder – ou à negativa decorrente do reconhecimento do sentimento refratário e falso – com a não satisfação dos desejos pela simples satisfação dos desejos. Ato contínuo e tão previsível do agente desprovido de qualquer bem querência: a ofensa. A autenticidade vira suburbana, a honestidade provinciana e mulheres que sabem exatamente o que querem e sabem dizer exatamente o que querem são tratadas como anormais e até – pasmem! - chantagistas. E o amor? Bom, o amor que era sem ser, dito e redito, falece sem nascer. Eternos garotos – maus garotos – acreditam iludir. Outro dia ouvi de uma amiga uma frase batida, ou não, pouco importa, mas certamente vulgar e triste pela situação que encerra: O verdadeiro canalha oferece algo à mesa e exige a cama. Há brincadeiras que não mudam (seus protagonistas insistem em não mudar) e a imaturidade emocional, às vezes, prevalece. Certas meninas cresceram, mas alguns meninos não. “Mas meu bem, deixa de ser alienada...”
Quando eu era jovem, nos anos 60/70, o amor era inda um desejo romântico e, mais que isso, um sonho político contra o “sistema’, uma busca de liberdade contra as regras da caretice, um “desregramento dos sentidos,”, diferente deste amor de mercado, amor transgênico, geneticamente modificado – este “fast love” de agora.
O amor virou um cultivo da intensidade contra a eternidade. É o fim do “happy end”. E, no entanto, era difícil amar completamente.
Falo isso porque sou do tempo em que as namoradas não “davam”.
Os meninos de hoje vivem em haréns. Esses garanhões privilegiados - que eu tanto invejo – torcem o nariz para deusas de 18 anos, entediados, enquanto, no meu tempo, as meninas, com pavor de engravidar, deixavam quase tudo, menos o principal, e os rapazes iam para casa com dor nos rins e perpetravam masturbações feéricas.
O medo era a “barriga”, a gravidez. Mas, mesmo depois da pílula, persistia o terror de uma liberdade assustadora; havia um forte apego a vestidos de debutantes, ao organdi branco, aos buquês e véus de noiva esvoaçando nas almas virgens. Quase ninguém “dava”. As poucas liberadas eram vistas pelos rapazes como uma atração cortada de preconceitos. Quantos teriam coragem de casar com elas? Lembro de uma menina na universidade que “dava”, mas o fazia num transe meio epiléptico, sofrendo com olhos virados e choros, do qual acordava sem lembrar de nada.
Não havia motéis, então. Namorávamos em qualquer buraco: terrenos baldios, cantos escuros da noite; eu mesmo já namorei dentro de uma grossa manilha encalhada na praia de Ipanema.
Quantas meninas eu tentei empurrar para dentro de apartamentos emprestados, mas que empacaram na porta!... Quantas unhas quebradas em sutiãs inacessíveis, quantas palavras gastas com complexas cantadas, apelando para Deus, para Marx, para tudo, desde que as saias caíssem e as calcinhas voassem... E meu caso foi pior, pois minha primeira namorada não era mais virgem – uma raridade.
Eu, que vivera até então na horrenda divisão entre bordéis e romances platônicos, achei que ia viver meu primeiro amor adulto. Mas, a namorada resolvera “reconstituir” neuroticamente sua virgindade, recusando-se a repetir comigo seu “erro” do passado. Arrependera-se de ter cedido uma única e sangrenta vez ao canalha que me anteceder e, com lágrimas e confissões na igreja, queria reconquistar a pureza perdida. Ou seja, para mim foi o calvário do coito interrompido. No carro do pai dela trocávamos carinhos sôfregos, apavorados, com desespero e orgasmos no ar.
O apartamento era a única esperança; se a menina entrasse, depois era mole. O problema era entrar. “Não adianta, meu bem, aí eu não entro!”
Eu, jovem comuna, tinha a chave de um “aparelho” secreto do Partido, ali em Copacabana – um conjugado com um sofá-cama rasgado e o algodão aparecendo, onde eu, da base cultural da UNE, queria tentar um amor adulto, mas com triplo medo:culpa política, medo de broxar e de ser apanhado pelos comunas caxias.
“Não entro!” – gemia minha namorada. Eu buscava argumentos que uma de Sartre e Simone até a revolução.
“Mas, meu bem... deixa de ser alienada... A sexualidade é um ato de liberdade contra a direita...” E ela: “Não entro! Isso seria também uma indisciplina pequeno-burguesa...”
“Mas, meu anjo – eu suplicava – você tem que assumir que não é mais virgem!”
E ela, com boquinha de nojo: “Eu sabia que você ainda ia jogar isso na minha cara!” E fugia pelas escadas.
Por isso, muitos homens casados viviam em casas de rende-vouz, como se dizia, e jovens corriam atrás de empregadas tristes e conformadas.
Éramos assim em 1962. Aos poucos melhorou... Em 63, conheci a primeira paixão, com vertigem e cegueira, pois, mesmo sem pílula e sem recuos, ela adentrou gloriosamente o “aparelho” do Partidão e, em meio a livros da Academia de Ciências da União Soviética, sob um pôster de Lenine e uma reprodução dos girassóis de Van Gogh, se entregou a mim com amor e coragem. Lembro que, embaixo, na loja de discos, tocava o sucesso da época – Chove chuva, chove sem parar... do Jorge Ben. Até hoje, guardo na alma essa tarde revolucionária.
Um dia, ela me largou por outro e eu virei um frágil comunista em pranto no Rio, pensado naquela poesia de Maiakosviki: “Venha de volta para meus braços desajeitados, amor... Não é por mum que tenho ciúmes; apenas me enciúmo pela Rússia Soviética...”
Sofri também por aquela ingratidão contra um militante de esquerda como eu, trocado por um engenheiro de direita da PUC, feliz possuidor de um reluzente Volks cor-de-laranja.
Hoje, o ritmo do tempo e do dinheiro acelerou o amor, matando seu mistério. Os casos duram uma semana, o amor tornou-se um software que pilotamos, com o controle das emoções programadas. Temos medo de nos apaixonarmos demais e de fracassar na produção.
Mas se a história atual parece não ter sentido, ainda querermos encontrar sentido para a vida, claro, e o amor é uma ilusão sem a qual não podemos viver. Mesmo denegada, a sensação de eternidade que a paixão provoca é um desejo geral, do cafajeste à perua.
Por isso, lembro aqui um poema lindo de Ferreira Gullar sobre o amor:
“É um lampejo que surgiu no mundo
essa cor
essa mancha
que a mim chegou
de trás de dezenas de milhares de manhãs
e noites estreladas
como um puído aceno humano
mancha azul que carrego comigo
como carrego meus cabelos
ou uma lesão oculta onde ninguém sabe.”
Arnaldo Jabor
Imagem de Bresson
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