Ninguém nasce; seria descabido
chamar alguém aos resíduos
de placenta que envolvem
um conjunto de órgãos
a tudo ou quase tudo predispostos.
Só os mortos, verdadeiramente,
existem. Escreveram ou não
escreveram livros, cartas de amor,
diários. Não importa: cruzaram-se
conosco, sentaram-se por vezes
à mesma mesa, acreditaram até
no terno suplício do amor.
E tinham mãos reais, ao tocarem
o rosto imberbe de que se despediam.
Um beijo, sobre rugas apenas,
conseguia tornar menos frias as manhãs.
Despedem-se muito mal, os mortos.
Embora, por uma vez, sejam
exatos e sinceros – no momento
em que descem à terra e nos impedem
de partilhar com eles um cigarro,
o último copo, uma espécie de destino.
São terrivelmente reais, os mortos.
A vida inteira não chega
para que possamos matá-los a todos,
um a um, como decerto aconselharia
a mais elementar higiene metafísica.
Dão-nos, contudo, a força necessária
para morrer cada vez mais, tolerando
dias de aluguel, casas ligeiramente
inabitáveis. Porque os outros, na
verdade, não passam de mortos
imperfeitos.
Estão, como nós, um pouco demasiado
vivos.
Talvez um dia, porém, venham a
assinar um poema assim (e pode até não
ser
um poema, muito menos assim), em que
se note,
além das influências óbvias, uma certa
– digamos – especialização no horror.
Pois é disso apenas que se trata.
Os mortos sabem-no.
A sabedoria é inútil.
A poesia também.
* * *
Norueguesa, alta, de um moreno
duvidoso que sorria muito.
Pedia-me insistentemente para não estar
triste como deveras estava.
E pagou-me, creio, o último copo,
antes de me perguntar “o que fazia”.
Escrever, sobre a morte, não é
exatamente uma profissão.
Mas foi a resposta que lhe dei,
enquanto um guardanapo qualquer
abreviava, só para ela, a minha “obra”.
Nunca saberei se percebeu a letra,
se comprou os livros, se chegou
a ouvir o que em péssimo francês
lhe tentei dizer nessa noite, a mais perdida.
Os versos são quase sempre isto: um modo
inaceitável de dizer que não tocámos o corpo
que esteve, por uma vez, tão próximo
de nós – e que nem um nome breve nos deixou.
* * *
Nunca amanhecera assim, num inimaginável
barracão perto da cidade gótica.
A sua casa.
Conhecia-o do Fandango,
e sabia apenas que uma tristeza sem lágrimas
lhe iluminava as tardes e as noites.
Dessa vez foi diferente. Eu acabara de partir
um copo no único pub ainda aberto
(a memória já não me devolve o nome).
Ele veio sentar-se ao meu lado, bêbedo
contra bêbedo, unidos pelo quase esplendor
da queda. Convidou-me a segui-lo e eu,
não sei bem porquê, acedi. Acompanhei-o
até às duas assoalhadas em que morava
– sem vizinhos, numa barraca de alumínio
e tabopan que fazia da palavra desespero
um eufemismo inoportuno. O cão,
pelo menos, gostou de nos ver chegar.
Depois chorou, a troco de nada. Queria apenas
um ombro concreto onde pousar a cabeça
que a mulher e as filhas já nem por engano
beijavam. Não precisava de gestos ou palavras,
bastava-lhe ser ouvido, partilhar o impartilhável
a que talvez chamasse (não me lembro bem) a dor.
Adormeceu assim, no meu ombro – e eu estava
capaz de matar (mas não a ele) por uma cerveja,
pelo gin que horas antes encontrara demasiado
cedo o chão. Ao amanhecer, abanei-o levemente,
disse-lhe que tinha mesmo de ir. Beijou-me
a mão, agradeceu com um sorriso estragado
aquele nada de nada entre dois homens
que nunca mais se voltarão a ver. Cá fora,
uma luz amordaçada desaconselhava qualquer
tentação lírica, vinha morrer nas couves,
nos dejetos vários que lhe tornavam menos só a solidão.
Não reconheci a cidade: pálida, desinteressante, reles.
Tremia de sono e frio ao entrar no primeiro
autocarro e quase acreditei – por algumas horas –
que existia, afinal, alguém ainda mais triste do que eu.
* * *
Habituou-se a caminhar
sob os plátanos, diluindo
ressacas e lembranças imperfeitas.
Pouco teriam em comum.
Foi num bar, o primeiro
encontro, em lados diferentes
mas não opostos do balcão.
Ela vestia o mais ardente
vermelho que já vira,
sob um cinzento agreste que
o frio de Janeiro quase desculpou.
Não dormiram logo juntos.
Mas ficou a dever-lhe um rasto
de esperma feliz, na cama
em que morria só. Ao seu lado,
Berkeley, Wittgenstein, Espinosa,
páginas de um curso que não queria
e que nem ao menos lhe sujava as noites.
Semanas depois, passeavam de mãos
dadas pelo jardim ou pelas ruas
mais próximas do bar.
Até ao dia em que deixou de vê-la.
Coração em brasa, cinza por todo o lado
– um vermelho assim não tem regresso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário