No dia 9 de novembro de 1989, como todos, vibrei com a queda do muro de Berlim e acreditei que uma nova era começava.
Fiquei emocionada com a reação das pessoas, com o fim do regime totalitário, com a retomada dos direitos individuais. Me encantei com a extinção da divisão artificial de uma única cidade, um povo e nação. Em cada lado do muro - 66,5km construídos na madrugada de 13 de agosto de 1961 - uma República: A Federal da Alemanha (RFA) e a Democrática da Alemanha (RDA) e, atrás delas, dois blocos distintos de países e ideologias representavam a divisão maior do capitalismo e do socialismo. Muro e blocos, duas figuras nada maleáveis. Aquele parecia ser um muro tão artificial quanto intimidante, que por si não foi capaz de conter anseios distintos, a liberdade, ou, até mesmo a possibilidade de ir, nem que fosse para querer voltar. Por isso, foi fortalecido com redes eletrificadas, alarmes, torres de observação e grades guardadas por ferozes cães de guarda e seus guardas. A forte segurança convivia com grafites multicoloridos, que talvez tentassem equilibrar a energia. A queda do muro teria representado o fim da Guerra Fria e o começo de novos problemas consequentes das diferenças entre os dois lados da mesma cidade. Constantemente aprendemos que as diversas repúblicas não compreendem ideais e conceitos idênticos, nem similares. Caiu o muro, fez-se história, mas o chão continua marcado pelo percurso do paredão limítrofe artificial e surgiram outras marcas, ainda surgem.
Em agosto daquele ano eu estive em Bonn, então capital da Alemanha Ocidental, e lembro que fiquei surpresa com a leveza, o colorido e a alegria alemã, que encontrei naqueles dias ensolarados de música nas praças, do delicioso jeito daquela cidade mais movimentada e pulsante do que a suíça Zurich - de onde eu vinha - e que eu considerava tão linda, tão adorável, tão organizada, tão limpa, à época, um dos meus lugares no mundo. Ah seu eu tivesse a menor suspeita de que aquele muro cairia três meses depois, eu teria ficado para me emocionar mais, para presenciar aquela parte da história.
Nos anos seguintes eu não conseguia entender como amigos alemães, moradores de Bonn e outras cidades próximas, aceitavam com prazer e orgulho o desconto de parte de seus salários para auxíliar a unificação alemã, oficialmente ocorrida em três de outubro de 1990. Nós não conhecemos esse desprendimento cívico e a cada medida compulsória demonstramos nosso estéril descontentamento. Não que deixemos de ser solidários, ao contrário, o brasileiro é um dos povos mais solidários do mundo, mas já estamos cansados de tantos tributos e descontos em nossos salários.
Em 1998 voltei à Alemanha, por conta de um curso de aperfeiçoamento, e senti que o encanto, ao menos na região que fiquei - Colônia e arredores - havia mudado.
Passados vinte anos, assisti a documentário sobre a queda do muro. Fiquei impressionada com o depoimento de um jornalista alemão, de alguns soldados e de um casal (que horas antes havia conseguido fugir para a Hungria) sobre os dias que antecederam à queda do muro. A ida de Gorbatchev à Alemanha Oriental e seu encontro com Erich Honecker, o incentivo à mudança e a resistência. Para completar, li a seguinte matéria no Jornal Folha de São Paulo. Tudo isso faz pensar e pode ser considerado um forte sinal, uma espécie de pré-aviso, só não sabemos ainda sobre o que:
Maioria dos alemães orientais sente que a vida era melhor no comunismo
Der Spiegel, por Julia Bonstein
A apologia da República Democrática Alemã está em alta, duas décadas depois da queda do muro de Berlim. Os jovens e os mais ricos estão entre os que desaprovam as críticas segundo as quais a Alemanha Oriental era um "Estado ilegítimo". Numa nova pesquisa, mais da metade dos antigos alemães orientais defendem a RDA. A vida de Birger, nascido do Estado de Mecklenburg-Pomerânia Ocidental no nordeste da Alemanha, poderia ser vista como uma história do sucesso alemão. O muro de Berlim caiu quando ele tinha dez anos. Depois de se formar no colegial, ele estudou economia e administração em Hamburgo, morou na Índia e na África do Sul, e depois conseguiu um emprego numa companhia na cidade ocidental de Duisburg. Hoje, Birger, 30, planeja velejar no Mediterrâneo. Ele não quis usar seu nome verdadeiro nesta reportagem, porque não quer ser associado à antiga Alemanha Oriental, que ele vê como "um rótulo com conotações negativas." Mesmo assim, sentado num café em Hamburgo, Birger defende o antigo país comunista. "A maioria dos cidadãos alemães orientais tinham uma vida boa", diz ele. "Com certeza, não acho que aqui é melhor." Por "aqui", ele quer dizer a Alemanha reunificada, que ele submete a comparações questionáveis. "No passado havia a Stasi [polícia secreta da Alemanha Oriental], e hoje existe (o ministro de interior da Alemanha Wolfgang) Schäuble - ou o GEZ (o centro de arrecadação de impostos das instituições de rádio e televisão públicas da Alemanha) - que coleta informações sobre nós." Na opinião de Birger, não há diferenças fundamentais entre a ditadura e o momento atual. "As pessoas que vivem na linha de pobreza hoje não têm liberdade para viajar."
Birger não é de forma alguma um jovem sem instrução. Ele está consciente da espionagem e da repressão que aconteceram na antiga Alemanha Oriental, e, segundo ele, "não era uma coisa boa que as pessoas não pudessem sair do país, e muitos foram oprimidos". Ele não é fã do que acredita ser uma nostalgia desprezível pela antiga Alemanha Oriental. "Eu não construí um templo para adoração dos pickles Spreewald na minha casa", disse ele, referindo-se à conserva que fazia parte da identidade da Alemanha Oriental. De qualquer forma, ele não perde tempo em argumentar contra os que criticam o lugar que seus pais chamavam de lar: "Não dá para dizer que a RDA era um estado ilegítimo, e que tudo está bem hoje". Como um defensor da ditadura da antiga Alemanha Oriental, o jovem compartilha da visão da maioria das pessoas da parte oriental da Alemanha. Hoje, vinte anos depois da queda do muro de Berlim, 57%, ou a maioria absoluta, de alemães orientais defendem a antiga Alemanha Oriental. "A RDA tinha mais pontos positivos do que negativos. Havia alguns problemas, mas a vida era boa lá", dizem 49% dos entrevistados. Oito por cento dos alemães orientais se opõem veementemente a todas as críticas à sua antiga terra natal e concordam com a declaração: "a RDA tinha, na maior parte, pontos positivos. A vida lá era mais feliz e melhor do que na Alemanha reunificada de hoje".
O resultado dessas pesquisas, divulgado na sexta-feira em Berlim, revela que a glorificação da antiga Alemanha Oriental atingiu o cerne da sociedade. Hoje, não é mais uma mera nostalgia eterna que chora a perda da RDA. "Uma nova forma de Ostalgia (nostalgia pela antiga RDA) se constituiu", diz o historiador Stefan Wolle. "A ânsia pelo mundo ideal da ditadura vai muito além das antigas autoridades governamentais." Até os jovens que quase não tiveram experiência com a RDA a estão idealizando hoje. "O valor de sua própria história está em jogo", diz Wolle. As pessoas estão ignorando os defeitos da ditadura, como se as críticas ao Estado fossem um questionamento de seu próprio passado."Muitos alemães orientais percebem as críticas ao sistema como um ataque pessoal", diz o cientista político Klaus Schroeder, 59, diretor de um instituto na Universidade Livre de Berlim que estuda o antigo Estado comunista. Ele alerta a respeito dos esforços para subestimar a ditadora SED por parte dos jovens cujo conhecimento sobre a RDA é derivado principalmente de conversas familiares, e não tanto daquilo que aprenderam na escola. "Nem mesmo metade desses jovens na parte oriental da Alemanha descrevem a RDA como uma ditadura, e a maioria acredita que a Stasi era um serviço de inteligência normal", concluiu Schroeder num estudo de 2008 feito com estudantes. "Esses jovens não podem, e na verdade não querem, reconhecer o lado sombrio da RDA."
"Retirados do paraíso." Schroeder fez inimigos com declarações como essa. Ele recebeu mais de quatro mil cartas, algumas delas furiosas, em resposta a reportagens sobre seu estudo. Birger, de 30 anos, também enviou um e-mail paraSchroeder. O cientista político agora compilou uma seleção de cartas típicas para documentar o clima opinativo no qual a RDA e a Alemanha unificada são discutidas na parte oriental da Alemanha. Parte do material proporciona um insight chocante sobre os pensamentos dos cidadãos decepcionados e irritados. "Sob a perspectiva atual, acredito que fomos retirados do paraíso quando o muro caiu", escreveu uma pessoa, e um homem de 38 anos "agradece a Deus" por ter tido a chance de viver na RDA, acrescentando que só depois da reunificação da Alemanha ele observou a existência pessoas que temiam por sua existência, pedintes e pessoas sem-teto. A Alemanha de hoje é descrita como um "Estado de escravos" e uma"ditadura do capital", e alguns autores das cartas rejeitam a Alemanha por ser, em sua opinião, muito capitalista ou ditatorial, e certamente não democrática. Schroeder acha essas declarações alarmantes. "Temo que a maioria dos alemães orientais não se identifiquem com o atual sistema socio-político." Muitos dos autores das cartas são pessoas que não se beneficiaram da reunificação da Alemanha ou que preferem viver no passado. Mas também incluem pessoas como Thorsten Schön. Depois de 1989, Shön, um artesão de Stralsund, cidade do mar Báltico, a princípio atingiu um sucesso depois do outro. Apesar de não ser mais dono do Porsche que comprou depois da reunificação, o tapete de pele de leão que ele comprou numa viagem à África do Sul - uma das muitas que fez ao exterior nos últimos 20 anos - ainda está estendido no chão de sua sala de estar. "Não há dúvida: eu tive sorte", disse o homem de 51 anos. O grande contrato que ele conseguiu durante o período após a unificação tornou as coisas mais fáceis para Schön abrir seu próprio negócio. Hoje ele tem uma visão clara de Strelas und direto da janela de sua casa avarandada.
"As pessoas mentem e trapaceiam em todo lugar hoje." Objetos de Bali decoram sua sala de estar, e uma versão em miniatura da Estátua da Liberdade fica ao lado do seu DVD player. Apesar de tudo, Schön senta-se no sofá e conta com entusiasmo sobre os bons evelhos tempos na Alemanha Oriental. "Antigamente, as áreas de camping eram lugares onde as pessoas desfrutavam da liberdade juntas", diz ele. O que ele mais sente falta hoje é "daquele sentimento de companheirismo e solidariedade". A economia da escassez, completada pelas trocas, era "mais como um hobby". Se ele tem uma ficha na Stasi? "Não estou interessado nisso", diz Schön. "Além do mais, seria muito desapontador."
Sua avaliação sobre a RDA é clara: "No que me diz respeito, o que tivemos naquela época foi menos ditatorial do que temos hoje". Ele quer ver salários iguais e pensões iguais para os moradores da antiga Alemanha Oriental. E quando Schön começa a reclamar da Alemanha unificada, sua voz contêm um elemento de satisfação consigo mesmo. Aspessoas mentem e trapaceiam em todo lugar hoje, diz ele, e as injustiças de hoje são simplesmente perpetradas de uma forma mais astuta do que na RDA, onde não se ouvia falar de salários de fome e pneus de carro cortados. Schön não tem nada a dizer sobre suas próprias experiências ruins na Alemanha atual. "Estou melhor hoje do que antes", diz ele, "mas não estou mais satisfeito." O pensamento de Schön envolve menos a lógica fria do que a necessidade de defender seu ponto. O que o torna particularmente insatisfeito é "o modo falso como o Oeste pinta o Leste hoje". A RDA, diz ele, "não era um Estado injusto", mas "meu lar, onde minhas conquistas eram reconhecidas". Schön repete obstinadamente a história de como levou anos de trabalho duro para ele começar seu próprio negócio em 1989 - antes da reunificação, ele acrescenta. "Aqueles que trabalharam duro também foram capazes de se dar bem na RDA". Isso, diz ele, é uma das verdades que são persistentemente negadas nos programas de debate, quando os alemães ocidentais "agem como se os alemães orientais fossem todos um pouco tolos e ainda deveriam estar de joelhos em gratidão pela reunificação". O que exatamente há para ser celebrado, Schön se pergunta? "Memórias tingidas de cor-de-rosa são mais fortes do que as estatísticas de pessoas tentando escapar e os pedidos de vistos de saída, e ainda mais fortes do que os arquivos sobre assassinatos no muro de Berlim e sentenças políticas injustas", diz o historiador Wolle. São as memórias de pessoas cujas famílias não foram perseguidas e vitimizadas na Alemanha Oriental, de pessoas como Birger, de 30 anos, que diz hoje: "Se a reunificação não tivesse acontecido, eu também teria tido uma vida boa". Depois de se formar na universidade, diz, ele teria sem dúvida aceitado uma "posição de gerência em alguma empresa", talvez da mesma forma que seu pai, que era o presidente de uma cooperativa de fazendeiros. "A RDA não tinha nenhuma influência na vida de um cidadão da RDA", conclui Birger. Essa visão é compartilhada por seus amigos, todos eles com estudo superior e filhos de ex-alemães orientais, nascidos em 1978. "Reunificação ou não", concluiu o grupo de amigos recentemente, de fato não faz diferença para eles. Sem a reunificação, suas opções de viagem seriam Moscou ou Praga, em vez de Londres e Bruxelas. E o amigo que trabalha no governo em Mecklenburg hoje provavelmente teria sido um oficial leal ao partido na RDA. O jovem expressa suas visões de forma equilibrada e com poucas palavras, apesar de parecer um pouco desafiador em alguns momentos, como quando diz: "Eu sei, o que estou dizendo não é tão interessante. A história das vítimas é mais fácil de contar." Birger não costuma mencionar sua origem. Em Duisburg, onde ele trabalha, quase ninguém sabe que ele é da Alemanha Oriental. Mas nessa tarde, Birger está disposto a contradizer "a história escrita pelos vitoriosos". "Na percepção do público, há apenas vítimas e carrascos. Mas as massas ficam à margem." Eis alguém que se sente pessoalmente afetado quando o terror e a repressão da Stasi são mencionados. Ele é um acadêmico que sabe "que ninguém pode consentir com os assassinatos no muro de Berlim". Entretanto, no que diz respeito às ordens dos guardas no muro de matar os que tentassem fugir, ele diz: "Se há um grande sinal ali, você não deveria ir lá. Foi totalmente negligente". Isso levanta uma antiga questão mais uma vez: existia uma vida real em meio à fraude? Subestimar a ditadura é visto como o preço que as pessoas pagam para preservar seu auto-respeito. "As pessoas estão defendendo suas próprias vidas", escreve o cientista político Schroeder, descrevendo a tragédia de um país dividido.
(Tradução: Eloise De Vylder)
Imagem de Brassai
Nenhum comentário:
Postar um comentário