quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Ah! essa necessidade atávica de querer tudo controlar

É ela. Sem dúvida é ela. Ora, pois, acreditamos. Sua total ausência de dúvida é o que de mais duvidoso existe. Quantas vezes você pensou exatamente assim: É ela! E quantas vezes ela deixou de ser.
Mas essa é tão carinhosa, dedicada, dócil, amorosa, alegre, generosa, bem humorada, cuida de mim, cuida das minhas coisas, prepara surpresas no meu aniversário, se preocupa com a minha saúde, melhora a minha alimentação, me incentiva a fazer exercícios, se preocupa com o que eu me preocupo, se interessa pelo que eu faço, acredita que eu sempre tenho razão, aceita minhas manias, não liga para os meus vícios – ela até me acompanha, sente prazer comigo e, sensacional, tem comportamento outdoor e demonstra a todos, sem exceção, nossa vida, o quanto me ama e o quanto eu sou o máximo. É ela.
O discurso interno é sempre o mesmo, as fontes de convencimento também, o terreno é aparentemente seguro, confortável, promissor e, principalmente, controlável, mas passado algum tempo, apesar do cenário todo adaptado de acordo com o gosto e as necessidades dele, alguma coisa acontece que o sufoca, oprime, o faz se sentir vazio, incompleto, infeliz, doente, o encanto se quebra e mais uma vez ela deixará de ser. Há um padrão aí, e uma sequência de escolhas erradas.
Como você dorme? Você faz questão de dormir de um lado específico da cama? Do lado esquerdo ou do lado direito? Você faz questão de dormir do lado que fica próximo à janela ou à porta? Como você arruma sua cama? Quantos travesseiros você precisa para uma boa noite de sono? Uma parte do lençol de cima deve ficar presa em baixo do colchão, ou, o lençol de cima deve ficar solto? Você não gosta do lençol de cima? Você não consegue dormir sem estar coberto pelo lençol e por uma colcha bem leve e suave, afinal, estamos em pleno verão? Você lê antes de dormir? Ouve música ou assiste TV? Você gosta de conversar antes de dormir ou em silêncio relaxa o corpo e a mente? Como é o seu colchão preferido? Cama com cabeceira ou sem? O que está sobre a mesinha ao lado da sua cama? O que você guarda na primeira gaveta do seu criado-mudo? Você faz questão de ter uma garrafa de água mineral por perto? 
Acredito que ninguém seria capaz de escrever sobre todas as suas próprias manias, idiossincrasias e comportamentos padronizados - apêndices acoplados ao corpo e mente ao longo da vida - sem correr o risco de desconhecer (ou não reconhecer) uma boa parte deles, ou, no caso de atento e perspicaz observador de seus próprios comportamentos, ideias e sentimentos, sem correr o risco de procurar imediato auxílio psiquiátrico.
Sou eu, meu corpo de um metro e setenta centímetros e outros eus, da mesma altura, formados por esses apêndices que deveriam tornar a vida muito mais interessante, mas, criam ambientes de conforto, controle e segurança – pseudo-ambientes – a limitar a existência.
As escolhas amorosas, por exemplo, costumam seguir o mesmo padrão: a repetição do que conhecemos e, o pior, do que entendemos controlar.
Nossas manias, idiossincrasias e comportamentos padronizados nos dão a falsa ideia de controle e custamos muito a entender que quanto mais desses apêndices incorporamos à nossa vida, mais seremos controláveis, previsíveis, isolados e, irremediavelmente, vazios.
Analiso bem os meus eus-apêndices e com carinho percebo o quanto, na realidade, são frágeis e com um sopro, vagarosamente, os desintegro até que reste somente o meu corpo, muito mais leve, um pouco mais sábio e inteiramente livre.

Imagem de Lilian Brassman

Um comentário:

Gerana Damulakis disse...

Que texto! Talvez, quase, digamos, uma catarse. Gostaria de estar ao lado, debater, trocar idéias que aqui, em tão pouco espaço, não cabem.
Idiossincrasias e vicissitudes da vida: "eu sou eu mais as minhas circunstâncias" (Ortega Y Gasset)