domingo, 8 de novembro de 2009

Rituais de passagem

Reconheço a sabedoria de alguns ritos e percebo a total desnecessidade de outros. Não há motivo para mantermos alguns comportamentos praticados no passado, mas há certos comportamentos que devem ser mantidos para firmarmos nossas raízes e não esquecermos de nossos valores.
Dormi bem e sequer ouvi a movimentação madrugadora do meu filho e do cão. Eu relaxei e queria passar um domingo tranquilo em casa, descansar da maratona da semana, do sábado de exames, do calor. Eu cochilava quando o garotão entrou animado no meu quarto e perguntou seu eu iria com ele visitar a yayá (vovó em grego). Visitar a yayá? Hoje? Mas a yayá faleceu no dia onze de novembro, dia de São Raphael... Este texto aparentemente mórbido merece explicação: Em geral os gregos têm nomes de santos da igreja ortodoxa (há gregos que escolhem nomes mitológicos para seus filhos) e comemoram o aniversário onomástico no dia do santo, de acordo com o calendário litúrgico. Meu pai chamava-se Raphael e minha mãe faleceu aos noventa anos, em casa, na madrugada de oito de novembro, dia de São Raphael. A primeira frase que meu filho conseguiu dizer após o susto, o choque e a dor imensa sentida pela yayá tão amada, foi sobre a coincidência de data e a ideia do papuli (vovô em grego) ter vindo, em seu dia, buscar a mulher com quem fora casado por mais de quarenta anos. Pedi meia horinha, meu filho se deitou ao meu lado, conversamos sobre tradição, rituais, valores, educação de filhos. Desde já o liberei da chatice dos almoços-obrigatórios-familiares de todos os domingos e combinamos que, ao menos uma vez por semana, estaremos juntos no jantar, no almoço, no café, no lanche - não importa - para colocarmos nossas vidas em dia, rirmos e trocarmos conselhos. Pedi para que ele compartilhe ao menos uma refeição por dia com seus filhos e os ensine a alegria, a harmonia e o prazer que os gregos sentem ao preparar e compartilhar a refeição com os demais. O garotão desceu para o passeio do cão e eu tomei minha xícara de chocolate morno. Dia oito de novembro, dia dos santos arcanjos Miguel, Raphael e Gabriel; três anos que minha mãe faleceu.
Assim, deixei de lado o descanso e com a dedicação e o amor recebidos a vida inteira fomos ao cemitério, que mais parece um lindo jardim pleno de árvores, flores e grama, sem mausoléus, estátuas, construções pesadas que assustam e impressionam. Durante o percurso conversamos bastante, rimos de várias situações, juntos escolhemos as flores, limpamos o jazigo com água que trouxemos da torneira próxima nos vasos de metal - a placa de cimento sobre a grama com a cruz de cobre e as placas com os nomes e as datas de nascimento e de morte de meus pais, trouxemos o banco verde de praça para bem perto, dividimos os quatro maços de flores para os dois, tiramos as folhas da parte de baixo dos caules para não entrarem em contato com a água, paramos nossa respeitosa e amorosa folia em consideração a um cortejo fúnebre que passou, fizemos o sinal da cruz em homenagem a quem havia partido, mantivemos silêncio, lembrei ao meu filho que era só exumar o corpo da yayá para abrir mais uma vaga - eu havia me esquecido que há vaga aberta porque exumamos o corpo do meu pai no dia que enterramos minha mãe - meu filho me avisou sobre sua criação de novo repertório para frases imbecis, sentamos no banco, reparamos como a árvore que era tão nanica, com caule mirrado e baixinha, está frondosa e cheia de lindas flores lilases, da cor exata que minha mãe mais gostava, muitas recém caídas sobre a grama a enfeitar mais ainda o lugar. Lembramos das vezes que o garotinho de quatro anos trazia os brinquedos novos para mostrá-los ao papuli, do dia que ele quis ver como ficava o caixão enterrado na terra e percebi que consegui criar um filho que respeita seus mortos, mantém alguns rituais, honra suas memórias, se lembra de seus ensinamentos, pede à Deus por eles e recorre à eles em orações. Espero que meu filho ensine certos rituais aos seus filhos e, de alguma maneira, mais valores sejam resgatados nesta vida. Na saída, enquanto descíamos a rampa para um dos dois grandes portões e conversávamos sobre a restauração de carros antigos, o telefone tocou pela segunda vez neste dia, eu fiquei entre o atendo e o não atendo, respondi com minha voz meio rouca, comentei com A o que fizemos, comentei sobre a minha confusão de datas - não é pouca coisa trocar o dia do aniversário onomástico de pessoa tão amada, o mesmo dia da morte de minha mãe - e justo pelo dia 11, minha cisma superada somente após a consulta ao calendário litúrgico e, surpresa, a descoberta do santo desconhecido daquele dia. Coincidência? Jamais! O garotão fez um comentário e, de repente, virei a mensageira do papo entre A e C sobre futebol, pijama e velhice. Retomamos a animada conversa sobre a restauração de carros antigos enquanto eu rapidamente pensei que havia algo estranho naquela triangulação dos rapazes com esta moça e no quanto o vértice contrário perde por não curtir a harmonia e a coisa toda. Dos carros antigos para a escolha do lugar para comemorarmos o aniversário onomástico, o delicioso almoço livre e fora de horário, assistimos parte da partida entre Palmeiras e Flamengo, conversamos mais sobre tantas coisas, nos divertimos com nossos comentários sobre a família sentada à mesa próxima: Pai, mãe, filha jovem, marido jovem e dois netos pequenos, as caras de tédio dos adultos, as crianças fora do controle, deixamos de lado exames e consultas, eu pedi ao meu filho
para que ele saiba reconhecer e evitar os rituais desnecessários e organize sua vida em prol do respeito e da felicidade, sua e dos demais.

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