segunda-feira, 2 de novembro de 2009

O poema é uma flor de sílabas, em que as pétalas são vogais e o caule uma consoante

Provavelmente noutro tempo, noutras circunstâncias
chegaríamos a iguais resultados
pelo que de nada adianta imaginar um almajesto
ou tabelas de paralaxe para isto
a que convencionalmente chamamos amor,
nem calcular o ângulo
entre nós e o centro da terra,
de nada nos aproveitara, tu e eu
centros escorraçados de irregular gravitação.

Porém, isso não me impediu de ver plêiades
cada vez que surgias (só
não te dizia nada) plêiades iluminando
meu Hades
com suas cabrinhas coruscantes
pascendo
o vale da sombra da morte.

E a questão hoje é: who’s gonna drive you home tonight?
quando o melancólico transístor
destila também outras perguntas, mas nenhuma
tão dura quanto essa,

por exemplo: porque é que a água tem mais tendência
a subir em tubos estreitos
ao contrário do mercúrio?
Isto é view-master e são coisas que faço
na tua ausência.


* * *

Não quero nada claro ou helênico.
Prefiro turbinas de aviões comerciais, a sua fuligem
doméstica
às velas de alabastro do veleiro de Ulisses
lá em mar alto.
Prefiro o eclipse a Calipso.
Não quero nada de verdadeiramente branco.
Dispenso a asa delta de garças,
o seu voo aerodinâmico,
troco-o pela arribação de ratos no esgoto,
a sua pressa chinesa,
o seu stress pós-traumático:
orgulham-me criaturas tão limpas.
Assim também recuso o papel branco:
trato de o desfigurar
com sangue negro, como se desfigura
um branco em Harlem.
Não quero começar a imaginar como se sentiriam
escravos nos campos de algodão.


* * *

O meu poema teve um esgotamento nervoso.
Já não suporta mais as palavras.
Diz às palavras: palavras
ide embora,
ide procurar outro poema
onde habitar.

O meu poema tem destas coisas
de vez em quando.
Posso vê-lo: ali distendido
em cama de linho muito branco
sem perspectivas ou desejo

quedando-se num silêncio
pálido
como um poema clorótico.

Pergunto-lhe: posso fazer alguma coisa por ti?
mas apenas me fixa o olhar;
fica a li a fitar-me de olhos vazios
e boca seca.

* * *

Eu ficarei à espera de que as uvas
das minhas videiras
amadureçam
à luminosidade da palavra
dia

* * *

As luzes elétricas, pode ser que as luzes elétricas
impeçam o outono de cair e a ave
de à janela surgir
na sua gabardina cinzenta.

A mandíbula aperta um verbo
e ave alguma surge
e coisa alguma acontece: é o outono
das folhas que caem, só –
nem um verbo cai assim.

Só soldado
e um sino entortado, toldado
badalamento frio,

pode ser que as luzes elétricas
e os paralelepípedos por exemplo,
pode ser que impeçam
a irregularidade no pavimento ou as horas
de se chocarem umas contra as outras

e as conchas dos guarda-chuvas
que toldam a cidade
pode ser que desenhem o teu nome
como num musical

pode ser que as lojas fiquem
e as lajes vão,
pode ser que não seja assim
dessa forma tão iníqua
que a chuva insista.

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