quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Tattoo

Será que conseguimos parar um tantinho só para percebermos o quanto determinados símbolos e atitudes deixaram de ter peso e significado negativos? O violão, por exemplo. Nas décadas de cinquenta e sessenta, as crianças, os jovens aprendiam a tocar piano, violino, flauta, reco-reco,campainha, mas violão, não. Violão era coisa de desocupado, de boêmio, do povo que ficava no bar e isso no Rio, cidade mais aberta e leve que São Paulo. Dias atrás assisti a documentário sobre a Bossa Nova e lá estavam Carlinhos Lyra e Roberto Menescal a comentar sobre a dificuldade que era, à época, aprender e ensinar a tocar violão. Wanda Sá, que fez um belo dueto com Menescal, ambos com seus violões, confirmou o quanto era difícil ser mulher e ainda por cima tocar violão. Mulher com voz ativa, a sustentar sozinha a família? Hoje, quase quarenta por cento dos lares brasileiros são sustentados por mulheres (não me baseio somente nos dados do IBGE), mas o que não mudou foi a dupla jornada: A maioria das mulheres cuida da casa e trabalha fora para garantir o sustento. Na década de sessenta Anne Bancroft (Mrs.Robinson) seduziu Dustin Hoffmann em The Graduate (1967), enquanto Jane Fonda, lançada por Roger Vadim como Barbarella (1968), era o auge da sensualidade. Hoje, Barbarella é ingênua e a síndrome Mrs.Robinson ganhou força, espaço e garante a felicidade de muitos casais.
Eu gosto dos anos 60 e gosto das mudanças que surgiram nessa década, tão ingênua e lírica, quanto idealista e entusiasta. Afinal, foi naquela década que a paz e o amor conviveram com as músicas de protesto e a rebeldia de parte da juventude que oscilava entre a vida natural e a química alucinógena. Os anos 60 fortaleceram a base da década seguinte e me conscientizo que faço parte da última geração que pode escolher entre estudar para ser alguém na vida, ou, construir uma casinha no meio do mato, perto do rio e do mar, para viver em harmonia com a natureza o resto de seus dias. Somos os últimos pais de surfistas, músicos e 'artistas', que passaram ao longe da gana por grana. Fizemos parte do grupo eclético de jovens, cujo futuro foi em parte definido pelo tamanho e pela força empenhada por nossos pais em nossas rédeas.
Os nascidos no final da década de cinquenta mantiveram vivos os sonhos da casinha no meio do mato, do alimento natural, da liberdade, da paz, da yoga, da busca por respostas em outras dimensões, em outros planetas. Alguns ingressaram ou criaram grupos, cultos e ritos em busca da chamada "luz universal", do "autoconhecimento", da busca pela "divindade interna", da magia, através das folhas da ayahuasca, de ervas, do kambo. Eu não sei se foram as músicas, a doutrina repetida, o barato (ou o tremendo bode) que a mistura de determinadas plantas propiciou à alguns jovens da minha geração e os fez acreditarem em "novas revelações", "luzes", "desbloqueios", "corpos sutis" a reforçar, do norte ao sul do país, o sincretismo religioso que sempre existiu aqui, a junção do espiritismo com a "força" da floresta. Essa era uma das vertentes. A segunda, mais urbana, procurou seu nirvana com o amigo do amigo do amigo, que sempre tinha no bolso o pacotinho fedido de maconha, o pó e outros trecos nada baratos, hoje, consumidos por alguns pais da minha geração e seus filhos, baseados no convencimento de que um cigarrinho de maconha "faria menos mal" do que uma dose de whisky e o cigarro impregnado de câncer vendido na banca de jornal da esquina. Tenho o espírito livre e sei onde é meu lugar, onde me sinto bem e feliz, sei sobre as coisas que eu quis fazer e não fiz, os lugares que eu queria viver, mas não vivi e dou graças a Deus pelos pais que tive, responsáveis, presentes, preocupados, exímios e competentes seguradores das minhas rédeas. Fiz parte da terceira vertente: Os caretas politizados (não entramos em contato com
drogas, tampouco fizemos parte de movimentos político-estudantis), jovens multiculturais, leitores e desportistas pelo prazer que a leitura e a pratica de esportes nos proporcionava, plenos de ideias, ideais e, à época, sem sabermos, equilibrávamos as outras duas vertentes com os valores, os sentimentos e a segurança de lares bem estruturados e a ingenuidade natural que ainda nos é tão peculiar. Fizeram-me careta, meus pais, e me ensinaram o prazer das coisas simples pela alegria interna, pela naturalidade para ser e fazer feliz, sem o trago, sem o gole, sem a fuga e, principalmente, sem a dependência. Dizem que foi na década de sessenta que um tatuador estrangeiro teria se instalado na zona portuária da cidade de Santos e lá teria criado fama. Portanto, no Brasil, há cinquenta anos, a tatuagem era coisa de bandido e de marinheiro. Li que arqueólogos encontraram registros de tatuagens feitas no Egito de 4000 a 2000 a.C. Na Polinésia, Filipinas, Indonésia, Nova Zelândia, a tatuagem estaria ligada à religião, à proteção e também identificaria a qual tribo a pessoa pertencia. Algumas tatuagens serviam para marcar fatos da vida: A primeira caça, a puberdade, o casamento, o nascimento do filho. Consta que os primeiros cristãos, perseguidos pela nova fé que optaram, reconheciam-se por sinais específicos tatuados em suas peles. Na Idade Média, a igreja Católica Romana teria proibido a tatuagem, por considerá-la vandalismo contra o próprio corpo. Na Segunda Grande Guerra a tatuagem ganhou força com os soldados que tatuavam o nome da amada e também representou o sofrimento dos prisioneiros de guerra. A tatuagem “é uma forma de comunicação não verbal que oferece informação instantânea”. E é permanente.
Tudo o que é permanente ou que causa dependência me afasta. Mas em algum momento da vida surge a necessidade de se tomar determinada decisão e assim foi com a minha tatuagem. Primeiro, foi meu filho que fez a sua tatuagem sem que eu soubesse e mostrou-me o desenho no dia que recebíamos visita em casa - com isso, ele descartou qualquer surto materno mais enfático. Depois, ele fez a segunda tatuagem e planejava a terceira quando eu voltava para casa, num dia chuvoso de Brasília, e apesar da velocidade mínima, rodei 360º com o carro, atravessei o canteiro entre um poste de luz e uma palmeira e aterrissei na pista contrária. Descarto a aquaplanagem porque a velocidade era bem baixa, considero um acidente comum de pistas molhadas naquela cidade seca, considero um milagre eu não ter machucado ninguém - o ponto de ônibus estava cheio de gente - eu não ter batido meu carro em outro carro, eu não ter me machucado. Considero outro milagre minha aterrissagem perfeita na pista oposta, apesar do ônibus que vinha em sentido contrário. Agradeci a todos esses milagres com a única tatuagem que tenho, desenho escolhido no calendário litúrgico greco-ortodoxo daquele ano. Foi divertido ver meu filho no papel de pai, a exigir agulhas novas, tinta de boa qualidade e o cuidado do tatuador, tudo o que eu teria feito se ele tivesse me contado antes de fazer sua primeira tatuagem. A minha tattoo é puro agradecimento e reforça minha fé.
Espalhadas e adotadas por muitos, há tantas pessoas tatuadas a criar nova estética, por vezes de gosto duvidoso. Acho um barato a tattoo de Angelina Jolie da latitude e longitude do nascimento de cada filho e ao mesmo tempo acho exagerada a quantidade de suas tatuagens e a exposição de seus símbolos com roupas e jóias habillés. Acho estranha a Marilyn Monroe tatuada no braço da bela Megan Fox. A perna tatuada de Drew Barrymore talvez ficasse mais interessante com um belo par de tênis. Considero as tatuagens de Fernanda Young demasiadas em quantidade e colorido. Percebo que Jolie tentou, sem sucesso, apagar algumas tatuagens, presumo da época de Bob Thornton. Tatuar o nome de amados pode dar trabalho. Enfim, fui mocinha muito bem comportada a vida inteira e tenho uma tatuagem. Talvez faça a segunda, não sei. Não gosto do exagero e do que se aproxima da mutilação. Piercing? Nenhum. Não tenho interesse.
Menina, menina, você tatuou todo o rosto? Assim, não vai encontrar ninguém. Será?

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