sábado, 3 de outubro de 2009

O clube do filme

Livro: O Clube do Filme, de David Gilmour (entre R$24,90 e R$ 15,40)



Eu não sei nada sobre educação, exceto isto: que a maior e mais importante dificuldade dos seres humanos parece residir naquela área que diz respeito a como criar os filhos, e como educá-los.

Michel de Montaigne (1533–1592)






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Outro dia, eu estava parado num sinal vermelho quando vi meu filho saindo do cinema. Ele estava com sua nova namorada. Ela segurava a manga do casaco dele com a ponta dos dedos e sussurrava algo em seu ouvido. Não cheguei a descobrir que filme eles tinham acabado de ver — os letreiros estavam cobertos por uma árvore em plena floração —, mas naquele momento me peguei recordando, com uma nostalgia quase dolorosa, os três anos que ele e eu passamos, só nós dois, assistindo a filmes e conversando na varanda de casa, um período mágico que um pai não costuma experimentar quando tem um filho adolescente. Agora, já não o vejo tanto quanto antes (e é assim que deve ser), mas aquele foi um período maravilhoso. Uma pausa feliz, para nós dois.
Quando eu era adolescente, acreditava que havia um lugar para onde iam os garotos maus, quando caíam fora da escola. Ficava em algum ponto remoto da Terra, como um cemitério de elefantes, porém repleto dos delicados ossos brancos daqueles garotos. Tenho certeza de que é por isso que até hoje ainda tenho pesadelos em que apareço estudando para uma prova de física, com crescente aflição, saltando as páginas de um livro cheio de vetores e parábolas — porque são coisas que eu nunca vi antes!
Trinta e cinco anos depois, quando as notas do meu filho começaram a oscilar na nona série, caindo terrivelmente no ano seguinte, eu reagi com uma espécie de duplo horror, primeiro em relação ao que estava efetivamente acontecendo, depois por causa da lembrança daquela sensação, ainda muito viva em mim. Foi quando troquei de casa com minha ex-mulher (“Jesse precisa viver com um homem”, ela disse). Eu me mudei para a casa dela e ela se mudou para o meu loft, que era pequeno demais para acomodar a presença, em tempo integral, de um adolescente de um metro e oitenta e com pés enormes. Dessa forma, pensei comigo mesmo, eu poderia fazer os deveres de casa para ele, em vez dela.
Mas não deu certo. Quando eu perguntava, a cada noite:
“É somente isso seu dever de casa?”, meu filho respondia alegremente:
“Com certeza!” Mas quando ele foi passar uma semana com a mãe, naquele verão, achei uma centena de deveres em branco, escondidos em todos os cantos possíveis de seu quarto. Resumindo, a escola o estava transformando em uma pessoa dissimulada, em um mentiroso.
Colocamos Jesse numa escola particular. Algumas manhãs, uma secretária perplexa telefonava para nossa casa, perguntando por ele: “Vocês sabem onde ele está?” Mais tarde, no mesmo dia, meu filho de pernas compridas se materializava na varanda.
Aonde ele tinha ido? Talvez a uma competição de rap em algum shopping do subúrbio, ou a algum lugar ainda menos saudável, mas não à escola. Nós o repreendíamos, ele se desculpava solenemente, andava na linha por alguns dias e, então, começava tudo de novo.
Jesse era um rapaz de natureza doce, muito orgulhoso, que parecia incapaz de fazer qualquer coisa na qual não tivesse interesse, mesmo que ficasse preocupado com as consequências disso. E ele se preocupava bastante. Os seus boletins escolares eram desanimadores, exceto pelos comentários sobre sua sociabilidade. As pessoas gostavam dele, todo tipo de pessoas, até mesmo o policial que o deteve uma vez por pichar os muros de sua antiga escola. (Vizinhos incrédulos o reconheceram.) Quando o oficial o deixou em casa, disse a ele: — Eu não pensaria numa vida de crimes se fosse você, Jesse. Você não tem esse dom.
Finalmente, numa tarde em que tentava lhe dar algumas explicações sobre latim, me dei conta de que ele não tinha trazido nenhuma anotação, nenhum livro escolar, nada além de um pedaço amassado de papel com umas poucas frases sobre magistrados romanos, que ele devia traduzir. Eu me lembro dele sentado,
cabisbaixo, do outro lado da mesa da cozinha, um garoto de rosto pálido e transparente no qual se podia perceber a chegada de qualquer preocupação, por menor que fosse, tão claramente como se podia ouvir alguém bater à porta. Era um domingo daqueles que os adolescentes odeiam, com o fim de semana terminando, o dever de casa por fazer, a cidade cinzenta como o oceano num dia sem sol. Folhas úmidas cobrindo a calçada e a segunda-feira insinuando-se em meio à névoa. Depois de algum tempo, perguntei a ele:
— Onde estão suas anotações, Jesse?
— Deixei na escola.
Jesse tinha facilidade para línguas, entendia sua lógica interna, tinha um ouvido de ator — aprender as coisas devia ser moleza —, mas, observando-o folhear o livro para a frente e para trás, eu podia ver que não sabia onde estava o que quer que fosse.
— Não entendo por que você não trouxe suas anotações para casa. Isso torna as coisas muito mais difíceis — eu disse.
Jesse percebeu a impaciência na minha voz: isso o deixou nervoso, o que, por sua vez, me causou desconforto. Ele estava com medo de mim. Eu odiava isso. Nunca soube se fazia parte da relação entre pai e filho ou se a fonte dessa ansiedade era um problema particular meu, meu pavio curto, minha impaciência
hereditária.
— Deixa pra lá — eu disse. — Será divertido mesmo assim. Eu adoro latim.
— Sério? — ele perguntou ansioso (talvez para tirar o foco das anotações esquecidas).
Então eu o observei trabalhar por algum tempo — seus dedos manchados de nicotina cobrindo a caneta, sua caligrafia ruim.
— Como exatamente se captura e conquista uma mulher sabina, pai?
— Eu explico depois.
Pausa.
— Elmo é um verbo? — ele perguntou.
E assim por diante, com as sombras da tarde avançando pelos azulejos da cozinha. Um lápis batucando no tampo de fórmica da mesa. Aos poucos, percebi uma espécie de resmungo baixinho. De onde vinha? Dele? Mas o que era? Meus olhos fixaram-se em Jesse. Era uma espécie de tédio, sim, mas de um tipo raro, uma convicção extraordinária, quase física, da irrelevância da tarefa que ele tinha à frente. E por alguma razão estranha, naqueles poucos segundos, eu experimentei aquele tédio como se estivesse acontecendo no meu próprio corpo. Ah, pensei, então é assim que ele passa seus dias na escola. Contra isso não se pode lutar. E, de repente — tão inconfundível quanto o som de uma janela quebrada —, compreendi que nós tínhamos perdido a batalha da escola. Eu também soube, no mesmo instante — senti na minha própria carne —, que perderia Jesse no meio daquilo tudo, que um dia ele ia se levantar e responder: “Quer saber onde estão as minhas anotações? Eu vou lhe dizer onde elas estão. Eu as enfiei no rabo. E se você não parar de encher meu saco, vou enfiá-las no seu também.” E, então, ele iria embora batendo a porta, bam, e seria o fim.
— Jesse — eu disse suavemente.
Ele sabia que eu o estava olhando, e isso o deixava inquieto, como se estivesse a ponto de se meter numa encrenca (de novo), e aquela atividade, folhear o livro para a frente e para trás, para a frente e para trás, era uma maneira de tentar escapar disso.
— Jesse, largue sua caneta. Pare por um segundo, por favor.
— Por quê? — ele perguntou.
Ele está pálido, pensei. Esses cigarros estão sugando toda a energia dele.
— Quero que você me faça um favor — eu disse. — Quero que pense se quer continuar indo à escola.
— Pai, as anotações estão na minha...
— Esqueça as anotações. Quero que você pense se quer ir à escola ou não.
— Por quê?
Eu podia sentir meu coração se acelerar, o sangue fluir para o meu rosto. Aquela era uma situação em que eu nunca estivera antes, nem mesmo imaginara ser possível.
— Porque, se você não quiser, está tudo bem.
— O que está tudo bem?
Apenas diga, desembuche.
— Se você não quiser mais ir à escola, não precisa mais ir.
Ele pigarreou.
— Você me deixaria sair da escola?
— Se você realmente quiser, sim. Mas, por favor, pense alguns dias sobre isso. É uma deci...
Ele se levantou num pulo. Ele sempre se levantava quando ficava excitado; suas pernas compridas não eram capazes de suportar, paradas, sua agitação. Inclinando-se sobre a mesa, ele disse em voz baixa, como se tivesse medo de ser ouvido:
— Eu não preciso de alguns dias.
— Pense mesmo assim. Eu insisto.
Mais tarde, naquela mesma noite, tomei coragem, com algumas taças de vinho, e telefonei para a mãe dele em meu loft (que ficava no prédio de uma antiga fábrica de doces), para lhe dar a notícia. Ela era uma atriz magra e muito bonita, a mulher mais gentil que já conheci na vida. Uma atriz nada “afetada”, se você me entende. Mas também capaz de fazer uma cena terrível, se imaginasse Jesse vivendo como um mendigo, numa caixa de papelão, em Los Angeles.
— Você acha que isso aconteceu porque ele tem baixa autoestima?
— Maggie perguntou.
— Não — respondi. — Acho que isso aconteceu porque ele odeia mesmo a escola.
— Mas deve haver algo errado com ele, se ele odeia a escola.
— Eu também odiava a escola — falei.
— Talvez seja daí que ele tenha herdado isso.
Seguimos nessa trilha por algum tempo, até que ela começou a chorar, e eu tentei lhe mostrar que aquilo não era tão ruim, com uma argumentação que teria deixado Che Guevara orgulhoso.
— Ele precisa arrumar um emprego, então — disse Maggie.
— Você acha que faz sentido substituir uma atividade que ele rejeita por outra?
— O que ele vai fazer, então?
— Eu não sei.
Talvez ele possa fazer algum trabalho voluntário — ela disse, fungando.
Acordei no meio da noite, com minha mulher, Tina, se remexendo ao meu lado, e fui até a janela. A lua pendia do céu, desproporcionalmente baixa. Como se estivesse perdida, esperando ser chamada de volta para casa. E se eu estiver errado?, pensei. E se estiver tentando ser moderno à custa do meu filho, deixando que ele arruíne a própria vida? É verdade, pensei. Jesse tem que fazer alguma coisa. Mas o quê? O que eu posso propor a ele que não seja uma repetição do desastre escolar? Ele não gosta de ler; detesta esportes. O que ele
gosta de fazer? Gosta de ver filmes. Eu também. Na verdade, por alguns anos, já nos meus trinta e muitos, cheguei a fazer críticas superficiais para um programa de televisão. O que poderíamos fazer com isso?
Três dias depois, ele foi jantar comigo no Le Paradis, um restaurante francês com toalhas de mesa brancas e talheres de prata pesados. Ele estava me esperando do lado de fora, sentado numa balaustrada, fumando um cigarro. Jesse jamais gostou de se sentar sozinho em restaurantes. Isso lhe dava a impressão de que todas as pessoas o classificariam como um perdedor, alguém
que não tinha amigos. Eu o abracei e senti a força de seu corpo jovem, sua vitalidade.
— Vamos pedir um vinho e bater um papo depois.
Entramos. Apertos de mão. Rituais adultos que o deixavam lisonjeado. Houve até mesmo uma piada entre ele e o barman sobre o personagem John-Boy, do seriado Os Waltons. Sentamos em silêncio, um pouco distraídos, esperando pelo garçom. Estávamos na expectativa de algo crucial; não havia nada a dizer até que isso acontecesse. Deixei-o pedir o vinho.
— Corbière — ele sussurrou. — É do sul da França, certo?
— Certo.
— Um pouco rústico?
— Isso mesmo.
— O Corbière, por favor — ele pediu à garçonete, com um sorriso que dizia: “Eu sei que estou brincando de adulto, como um macaco de imitação, mas, de qualquer maneira, estou me divertindo.” Deus, ele tem um belo sorriso. Esperamos o vinho chegar.
— Você faz as honras — eu disse.
Ele cheirou a rolha, balançou desajeitadamente a taça de vinho e, como um gato se familiarizando com um pires de leite, deu um gole.
— Não sei dizer — falou, abandonando sua atitude no último momento.
— Sim, você sabe — eu disse. — Apenas relaxe e sinta. Se achar que não é bom, é porque não é bom.
— Mas eu fico nervoso.
— Apenas sinta o aroma. Você saberá. A primeira impressão é sempre a correta.
Ele voltou a cheirar.
— Aproxime mais o nariz.
— É bom — ele disse.
A garçonete sentiu o aroma da garrafa.
— É bom ver você de novo, Jesse. Seu pai vem sempre aqui.
Olhamos à nossa volta, no restaurante. O casal de idosos de Etobicoke estava lá. Um dentista e sua mulher: o filho deles a ponto de concluir o curso de administração em alguma faculdade de Boston. Eles acenaram. Nós acenamos de volta. E se eu estiver errado?
— Então — eu disse. — Você pensou sobre aquilo que conversamos?
Dava para ver que ele queria ficar de pé, mas não podia. Jesse olhou em volta, parecendo irritado com essa restrição. Então aproximou seu rosto pálido do meu, como se fosse me contar um segredo.
— A verdade — ele sussurrou — é que eu não quero nunca mais pôr os pés numa escola de novo.
Meu estômago se revolveu.
— Tudo bem, então.
Jesse olhou para mim, atônito. Ele estava esperando que eu criasse um caso. Eu disse:
— Só tem uma coisa. Você não precisa trabalhar, não precisa pagar aluguel. Você pode dormir até as cinco da tarde todos os dias, se quiser. Mas nada de drogas. Se aparecer com alguma droga, nosso acordo está desfeito.
— Tudo bem — ele disse.
— É sério. Vou realmente castigar você, se começar a mexer com isso.
— Certo.
— Tem mais uma coisa — falei (estava me sentindo como o detetive do seriado Columbo).
— O que é? — ele perguntou.
— Quero que você assista a três filmes por semana, comigo. Eu escolho os títulos. Essa é a única educação que você vai receber.
— Você está brincando — ele disse, após um momento.
Não perdi tempo. Na tarde seguinte, sentei-o no sofá azul da sala, eu à direita, ele à esquerda, puxei as cortinas e mostrei a ele Os Incompreendidos (1959), de François Truffaut. Pensei que seria uma boa maneira de apresentar os filmes de arte europeus, embora soubesse que ele provavelmente os acharia tediosos até
que aprendesse como assistir a eles. É como aprender as variações da gramática. Truffaut, eu expliquei (e quis fazê-lo de forma breve), entrou no cinema pela porta dos fundos. Tinha largado a escola (como você), vivia pelas ruas e era um ladrãozinho nas horas vagas; mas adorava filmes, e passou a infância inteira enfiado nos cinemas que se espalhavam pela Paris do pós-guerra.
Quando tinha 20 anos, um simpático editor ofereceu a ele um trabalho como crítico de cinema — e isto o levou, seis anos depois, a dirigir seu primeiro filme. Os Incompreendidos (cujo título original em francês, Les 400 Coups, é uma expressão idiomática que faz alusão às “diabruras da juventude”) era um olhar autobiográfico sobre os conturbados anos de vadiagem de Truffaut. Em busca de um ator para interpretar a versão adolescente dele próprio, o diretor estreante, de 27 anos, colocou um anúncio no jornal. Poucas semanas depois, apareceu um garoto de cabelos negros, que tinha fugido de um internato, no centro da França, e viajara de carona até Paris, para fazer um teste para o papel de Antoine.
Seu nome era Jean-Pierre Léaud. (Nessa altura, eu já tinha conseguido prender a atenção de Jesse.) Expliquei que, com exceção de uma cena no consultório da psiquiatra, o filme todo fora rodado sem som — adicionado mais tarde —, porque Truffaut não tinha dinheiro para o equipamento de gravação. Pedi a Jesse que prestasse atenção numa cena famosa, na qual todo um grupo de estudantes desaparece pelas costas do professor, durante um passeio por Paris; abordei suavemente outro momento maravilhoso, quando o jovem rapaz, Antoine, está falando com a psicóloga. — Observe o sorriso que ele dá quando ela lhe pergunta sobre sexo — eu disse. — Lembre-se de que não havia roteiro; isso foi totalmente improvisado.
Nessa hora, achei que já estava começando a soar como um professor ginasial, então parei de falar e coloquei o filme. Assistimos do início ao fim, até aquela longa sequência em que Antoine foge correndo do reformatório; ele corre por campos, quintais, pomares de macieiras, até chegar ao deslumbrante oceano. É como se nunca o tivesse visto antes. Aquela imensidão, que parece se estender até o infinito! Ele desce por uma escada de madeira, avança pela areia e, lá, onde as ondas morrem, vira-se levemente para trás e olha diretamente para a câmera. Nesse momento, a imagem congela: o filme acabou. Um tempo depois, perguntei a Jesse:
— O que você achou?
— Um pouco chato.
— Você vê algum paralelo entre a situação de Antoine e a sua? — insisti.
Ele pensou durante um segundo.
— Não.
— Por que você acha que ele tem aquela expressão engraçada no rosto, no final do filme, na última cena? — perguntei.
— Não sei.
— Como ele parece estar se sentindo?
— Ele parece preocupado — Jesse disse.
— Com o que ele poderia estar preocupado?
— Não sei.
— Veja em que situação ele está. Fugiu do reformatório e de sua família. Está livre... — falei.
— Talvez ele esteja preocupado com o que vai fazer em seguida.
— O que você quer dizer com isso? — perguntei.
— Talvez ele esteja pensando: “Certo, cheguei até aqui. Mas, e agora?”
— Tudo bem, então me deixe perguntar novamente. Você vê alguma coisa em comum entre a situação dele e a sua? Ele sorriu.
— Você quer dizer sobre o que vou fazer agora que não preciso mais ir à escola?
— Sim.
— Não sei.
— Bem, talvez seja por isso que o garoto parece preocupado. Ele também não sabe — eu disse. Após um momento, Jesse falou:
— Quando eu estava na escola, ficava preocupado com tirar notas baixas e me encrencar. Agora que não estou mais lá, fico preocupado porque talvez esteja estragando minha vida...
— Isso é bom — eu disse.
— Como assim?
— Isso significa que você não vai se conformar com uma vida ruim.
— Gostaria de poder parar de me preocupar tanto. Você se preocupa?
Eu me peguei dando um suspiro involuntário.
— Sim.
— Então isso nunca acaba, mesmo que a gente faça tudo direito?
— A qualidade da preocupação é que muda — falei. — Tenho preocupações mais felizes hoje do que no passado.
Jesse olhou para fora pela janela.
— Isso tudo está me dando vontade de fumar um cigarro. Aí vou poder me preocupar com um câncer no pulmão.
No dia seguinte, como sobremesa, ofereci a ele Instinto Selvagem (1992), com Sharon Stone. Mais uma vez, fiz uma pequena apresentação sobre o filme, nada sofisticada. Uma regra de ouro que estabeleci: ser o mais simples possível. Se ele quiser saber mais, vai perguntar. Eu disse:
— Paul Verhoeven. Diretor holandês. Veio para Hollywood depois de alguns sucessos na Europa. Grande impacto visual, iluminação requintada. Fez alguns filmes excelentes, ultraviolentos, mas assistíveis. RoboCop é o melhor deles. (Eu estava começando a soar como uma máquina de código Morse, mas não queria perder a atenção de Jesse.) Continuei:
— Ele também fez um dos piores filmes de todos os tempos, um clássico burlesco chamado Showgirls.
Começamos a ver o filme, que tem início com uma loura bronzeada golpeando um homem com um picador de gelo, no meio de uma relação sexual. Bela cena de abertura. Depois de quinze minutos, é difícil não concluir que Instinto Selvagem
não é apenas um filme sobre pessoas estranhas, mas um filme feito por pessoas estranhas. Ele deixa transparecer uma fascinação típica de adolescentes atraí dos por cocaína e “decadência” lésbica. Mas é um filme maravilhosamente assistível — é preciso reconhecer. Ele evoca uma espécie de pavor agradável. Algo importante ou obsceno parece estar sempre acontecendo, mesmo quando não está. E depois, é claro, há os diálogos. Comentei com Jesse que o roteirista Joe Eszterhas, um ex-jornalista, recebera 3 milhões de dólares para escrever esse tipo de coisa:
detetive: Há quanto tempo você estava saindo com ele?
sharon stone: Eu não estava saindo com ele. Eu estava fodendo com ele.
detetive: Você lamenta que ele esteja morto?
sharon stone: Sim. Eu gostava de foder com ele.
Jesse não conseguia tirar os olhos da tela. Ele podia até ter gostado de Os Incompreendidos, mas isso era muito diferente.
— Podemos fazer uma pausa um momento? — ele disse, e correu até o banheiro para dar uma mijada; do sofá, ouvi o barulho do tampo do vaso e, em seguida, aquele som característico.
— Deus do céu, Jesse, feche a porta! Bam, a porta foi fechada. Então ele correu de volta, aos pulos, segurando a calça pela cintura, e voltou a se aboletar no sofá.
— Você tem que reconhecer, pai: este sim é um grande filme.

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