domingo, 4 de outubro de 2009

Porta de entrada para evitar a angústia da liberdade

Para quem tem filhos e para quem consegue entender o que significa ter filhos. É inevitável: No dia da descoberta da gravidez nascem ideias, planos, temores. Como ter um filho num mundo com este? Como protegê-lo de tanta coisa ruim, gente ruim, doenças, tristezas e mágoas? O melhor pediatra, a melhor alimentação, a melhor escola, sua melhor parte e seu absoluto amor dedicado ao filho, sem esperar nada em troca. Absoluto, desprendido e abnegado amor. Seu sacrifício: Trabalhar, produzir para garantir a qualidade de vida, deixar suas vontade para depois, relegar-se à segundo plano, não dormir às noites para buscar o jovenzinho das baladas, não dormir por que o garotão vai sozinho às baladas. Esperar acordada e como quem não quer nada puxar conversa rápida para perceber se o filho cometeu algum exagero; dar um beijo de boa madrugada, quase manhã, para curtir o carinho raramente aceito pelo rapagão e também para detectar cheiros estranhos, eternos temores de pais; olhar os olhos, o olhar tão diferente e ao mesmo tempo tão conhecido - profundamente conhecido - para confirmar a lucidez do filho que, graças a Deus, voltou inteiro. Ter filhos presume constante e dedicada vigília. Presunção não é regra, pois existem pais que levam a coisa toda numa boa, desencanam, não se preocupam, continuam suas vidas, integram seus filhos aos seus horários e atividades e os liberam cedo para a vida - os liberaram desde o primeiro dia. Ter ficado acordada inúmeras madrugadas não me fez mais mãe do que a mãe que não deixou de lado um minuto sequer do seu sono. Tudo isso é escolha, jeito de ser, maneira de criar filho. Não existe padrão, não existe manual perfeito que ensine como lidar com essas gracinhas que transformam nossas vidas.
Há tempos li matéria sobre o escritor, crítico de cinema e cineasta David Gilmour e sua sábia atitude diante da rebeldia - ou qualificação mais precisa do que essa - de seu filho de quinze anos, Jesse. Eu não quero estudar, teria dito o menino. Quatro simples palavras com a força de um tsunami sobre a cabeça de qualquer pai ou mãe considerados normais - mas o que é normal, mesmo?
Sexta passada, ao conversar com engenheiro de capacidade profissional reconhecida e cujo nome é precedido pela carreirinha de letras de seus super-títulos acadêmicos, comentei sobre a atitude de David Gilmour e ouvi a reação de um pai tão espantado com a ousadia, quanto desesperado caso seu próprio filho viesse com tal novidade. Desespero é a palavra mais apropriada. O filho do engenheiro tem apenas dez anos, mas a projeção da possibilidade de um dia seu pimpolho desistir dos estudos - como?! O filho de um pesquisador desistir de estudar?! - pareceu-lhe o fim do mundo. Pois foi exatamente isso que aos 15 anos Jesse Gilmour decidiu fazer: Parar de estudar. Diante da infelicidade do filho (e qual adolescente não é infeliz?) David autorizou seu filho a deixar os estudos com uma única condição: Toda a semana o garoto deveria assistir a três filmes escolhidos pelo pai. Assistir aos filmes escolhidos e em companhia do pai. David não impôs que seu filho procurasse emprego, ou, substituísse a atividade escolar por outra responsável e social, como tornar-se voluntário em algum centro de crianças ou idosos, mas e tão somente os três filmes semanais. Os filmes e nenhuma droga!
Você, pai zeloso, esforçado e dedicado, teria esse comportamento com seu garoto? A senhora, aí ao lado, com essas olheiras profundas e as crises de gastrite que sua adorável filha lhe causa, faria o quê, numa situação dessas?
Além de educar Jesse e evitar que a rebeldia do garoto se tornasse maléfica, David fez o que pouquíssimos pais fazem: Durante três anos ele conviveu de fato com seu filho, compartilhou experiências, trocou ideias, conversou (principalmente, ouviu), observou e entre os dois surgiu a proximidade, o companheirismo e a franqueza, pela união em torno de interesse comum. Laços estreitados, sentimentos assumidos e horizontes expandidos.
Antes de cada filme o pai informava dicas ligeiras e, ao final, perguntava ao filho algo sobre o filme. Jesse expunha, ou não, sua interpretação e aos poucos o garoto percebeu que livrar-se das coisas chatas e desagradáveis era fácil, mas encontrar um rumo, ah! isso é bem mais complicado. Para o pai, também não foi fácil. Durante uma entrevista ele comentou que acordava de madrugada com pavor por destruir o futuro do filho e, ao mesmo tempo, temeu com a possibilidade de transformá-lo num desagradável esnobe, ou, que as sessões cinéfilas virassem mais uma obrigação. Foi por isso que David evitou aplicar qualquer método na escolha dos filmes e juntos assistiram a obras famosas e obscuras, boas e ruins, antigas e recentes, de acordo com a lembrança de David. Durante esses três anos, houve um período que Jesse ficou muito triste por causa da namorada, então, surgiu o “ciclo do terror”, para que uma emoção forte ajudasse a esquecer outra.
Dessa experiência Jesse criou sua lista de filmes preferidos: Uma Rua Chamada Pecado, de Elia Kazan; Noivo Neurótico e Noiva Nervosa, de Woody Allen; O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola; Scarface, de Brian de Palma e Bons Companheiros, de Martin Scorsese. David listou: Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci; Assim Caminha a Humanidade, de George Stevens; Crimes e Pecados, de Woody Allen; Amor à Queima-roupa de Tony Scott ; Sindicato de Ladrões, de Elia Kazan.
Como está Jesse? Ora, hoje, aos 23 anos, ele estuda por livre escolha, já rodou um curta-metragem e prepara o roteiro de um longa.
Mais do que esperar de madrugada, buscar sinais e odores, intuir, é nossa principal e interminável função ensinar nossos filhos e aprender coisas novas com eles. É esta necessidade evolutiva que devemos incentivar e preservar.
Imagem de Doisneau

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