quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Asclépios

“Os deuses não revelaram aos homens todas as coisas desde o começo, mas estes, procurando-as, encontram com o tempo o que lhes é melhor.”


“Queres ser médico, meu filho? Essa aspiração é digna de uma alma generosa, de um espírito ávido pela ciência. Desejas que os homens te considerem um deus que alivia seus males e lhes afugenta o méd. Mas, pensaste no que se transformará tua vida?
Terás que renunciar à vida privada: enquanto a maioria dos cidadãos pode, terminado o trabalho, distanciar-se dos importunos, tua porta estará sempre aberta a todos. A qualquer hora do dia e da noite virão perturbar teu descanso, teu lazer, tua meditação; já não terás hora para dedicar à família, aos amigos, ao estudo... Já não te pertencerás.
Os pobres, acostumados a sofrer, te chamarão só em caso de urgência. Mas os ricos te tratarão como escravo encarregado de remediar seus excessos: seja porque têm uma simples indigestão, seja porque estão resfriados: farão com que te despertes e venhas a toda pressa, logo que sintam alguma moléstia. Terás que te mostrar interessado pelos detalhes mais comuns de sua existência; terás que lhes dizer se devem comer carne de boi ou peito de galinha, se lhes convém andar desse ou daquele modo. Não poderás ir ao teatro nem ficar doente: terás que estar sempre pronto a acudir, quando chamado.
Eras rígido na escolha de teus amigos. Procuravas o convívio de homens de talento, de almas delicadas e de bons conservadores. Agora não poderás descartar aos chatos, aos poucos inteligentes, aos presunçosos, aos desprezíveis. O mal feitor terá tanto direito à tua assistência como o homem honrado: prolongarás vidas nefastas e o sigilo de tua profissão te proibirá impedir ou denunciar ações indignas das quais serás testemunha.
Acreditas firmemente que com o trabalho honrado e o estudo atendo poderás conquistar uma reputação: tem presente que te julgarão, não por tua ciência, mas pela casualidade do destino, pelo corte de tua roupa, pela aparência de tua casa, pelo número de teus criados pela atenção que dediques às conversas informais e aos gostos de teus pacientes. Haverá os que desconfiarão de ti se não usas barba, outros se não procedes da Ásia; outros se acreditas nos deuses; outros se és ateu.
Gostas de simplicidade: terás que adotar a atitude de um profeta. És ativo, sabes quanto vale o tempo. Não poderás demonstrar cansaço ou impaciência: terás que escutar relatos que procedem do começo dos tempos quando apenas se quer explicar a história de uma prisão de ventre. Os ociosos virão ver-te pelo simples prazer da conversa: servirás de escoamento para suas mínimas vaidades. Embora a medicina seja uma ciência incerta, que graças aos esforços de seus discípulos vai adquirindo pouco a pouco, um certo grau de certeza, não te será permitido duvidar, sob pena de perderes a confiança que em ti depositam. Se não afirmas que conheces a natureza da enfermidade, que possuis o remédio para curá-la, o povo te trocará pelos charlatães que vendem a mentira que eles necessitam.
Não contes com o agradecimento de teus enfermos. Quando se curam tara sido por sua própria robustez: se morrem fostes tu o culpado.
Enquanto estão em perito, te tratam como a um deus: te suplicam, te exaltam, te enchem de elogios. Apenas começam a convalescer já os estorvas. Quando se lhes fala dos honorários se aborrecem e te denigrem. Quanto mais egoístas são os homens mais solicitude exigem.
Não penses que essa profissão tão dura te tornará um homem rico. Assegura-te: é um sacerdócio, e não seria decente que tivestes os ganhos de um comerciante de azeite ou de um político.
Compadeço-me de ti se te atrai o belo: verás o mais feio e repugnante que existe na espécie humana. Todos os teus sentidos serão maltratados. Terás que encostar o ouvido em peitos suados e sujos, respirar o odor das favelas, os fortes perfumes das prostitutas: terás que palmar tumores, tratar de chagas verde de pus, examinar urina, remexes em escarros, fixar o olhar e o olfato em imundícies.
Quantas vezes em um belo dia ensolarado, ao sair de uma representação de Sófocles, te chamarão para atender alguém acometido de cólicas abdominais, que te apresentará um urinol nauseabundo, dizendo satisfeito: ainda bem que tive a precaução de não jogar fora. Recordas então que terás que agradecer e mostrar todo teu interesse por aquela dejeção.
Até a própria beleza das mulheres, consolo dos homens, se desvanecerá para ti. As verás pelas manhãs, desgrenhadas desprovidas de maquiagem, com parte de seus atrativos espalhados pelos móveis do quarto. Deixarão de ser deusas para converterem-se em seres afligidos pela miséria, sem graça. Só sentirás por elas compaixão.
O mundo te parecerá um grande hospital, uma assembléia de seres que se queixam. Tua vida transcorrerá à sombra da morte, entre a dor dos corpos e das almas. Assistindo algumas vezes o luto de quem está destroçado por haver perdido o pai, e outras vezes, a hipocrisia daquele que, à cabeceira do agonizante faz cálculos sobre sua herança.
Pensa bem enquanto há tempo. Mas se, indiferente à fortuna, aos prazeres, à ingratidão: e sabendo que te verás, muitas vezes, só entre feras humanas, ainda tens a alma estóica o bastante para encontrar satisfação no dever cumprido, se te julgas suficientemente recompensado com a felicidade de uma mãe que acaba de dar à luz, com um rosto que sorri porque a dor passou, com a paz de um moribundo que acompanhastes até o final; se anseias conhecer o homem e penetrar na trágica grandeza do seu destino, então, torna-te médico, meu filho.”

Nenhum comentário: