sábado, 4 de abril de 2009

Para duas amigas

“Ai, Zeus de ampla vista detestou na verdade
a descendência de Atreu, por causa das intrigas femininas,
desde o início! Muitos perecemos devido a Helena;
e contra ti estendeu Clitemnestra o dolo enquanto estavas ausente.”
Homero - Odisséia

“Para principiar, tu foste a causadora
de nossas desventuras, pois gerando Paris

trouxeste ao mundo a fonte de nossas desgraças.
Depois de ti, o autor da perdição de Tróia
e minha foi o velho servidor de Priamo,
que não matou o teu recém nascido filho
simbolizado em sonho angustioso outrora
por lenho ardente. O infante Paris foi poupado
e veio a ser mais tarde o arbitro escolhido
pelas três deusas. Palas logo ofereceu-lhe
a Grécia, que ele e as forças frigias venceriam...”
Eurípedes – As troianas (Helena diante de Menelau e Hécuba)

Acordei e lembrei que sonhei com você. Sonhei com você, com sua mãe, seu pai, sua irmã. E como acordei, dormi, acordei, dormi novamente porque é sábado e reaprendo a dormir mais e melhor (apesar dos três exames diferentes marcados no mesmo hospital nesta primeira manhã do final de semana) não sei em qual dormir gostoso meu sonho aconteceu. É muito bom esse acordar tranquilo calmo, que não depende de despertador – quieto em seu descanso semanal, somente os números vermelhos luminosos a lembrar que existe algo chamado hora – e o aconchegar gostoso, com o sono imediato e profundo.
Havia uma casa rodeada de árvores plantas um bosque, era a casa de seus pais e eu a levei de carro para lá, depois de termos almoçado conversado e você estava um pouco preocupada, ansiosa, parecia que havia algum incômodo interno que não a deixava relaxar e você precisava que a levassem para lá, de carro, do jeito que fomos à noite para a casa de praia de nossa meninice, perto de São Sebastião, poucos meses após meu regresso para São Paulo, porque você precisava parir ideias palavras ações que comporiam a primeira readaptação que você tanto queria (e merecia) e um pouco temia e depois da caminhada bem cedo até a praia, do banho de mar cada uma a segurar potinho de sal, voltadas para o lado certo tão incerto eu a seguir seus gestos sem saber direito o que fazia até que deixei a intuição guiar meu jeito de deixar na água do mar tanta coisa que seu amigo havia visto e me apeguei no que sei me apegar e rezei do jeito que sei rezar, e da folha de bananeira que você valente encontrou desbravou o terreno ocupado pelo mato e cortou com uma agilidade que eu não lembrava que você tinha.
Além da noite, noutra ocasião, naquela pizzaria elegante, a mesa bem ao lado da fonte de água com barulhinho gostoso e do vinho tinto mais gostoso ainda a refeição e somente após algum tempo você conseguiu abrir e chorou pelo que mais temia, teme. Querida, essa velha história sobre gregos e troianos e do agrado certo, aparentemente impossível de acontecer ao mesmo tempo - como agradar inimigos ferozes e tão diferentes - me parece mal interpretada meio exagerada, mais pesada do que deveria. Afinal, todo aquele povo orgulhoso e meio arrogante pleno de cultura e beligerância, descentes de aqueus, jônicos, dóricos, eólicos e de mais algumas tribos que resolveram juntar-se naquele lugar; os espartanos e os troianos, minha amiga, na verdade são todos gregos. Sim, gregos, amantes de belas mulheres, cavalos, boas brigas e atos heróicos. E você acha que Homero perderia seu precioso tempo com Helena e Paris se os dois não fossem gregos? Ou que toda a turma famosa de deuses e semideuses (sempre Zeus a aprontar das suas, com pimpolhos e pimpolhas espalhados por todos os cantos para desespero da vingativa e pobre Hera) se mobilizaria por outro povo que não o grego? E Helena, querida, que de raptada nada tinha e apaixonou-se por Paris e com ele fugiu; você acha que Helena trocaria um rei grego se não fosse por outro rei grego? Então, filha, queira (passei bem longe do preocupe-se), mas queira mesmo agradar a você, que o agrado a todas as outras tribos, sem exceção, será natural consequência. Desde seus quatorze anos, que eu me lembre, você permite o natural fluir de palavras e tem sido o suporte certo para a trajetória que mais admira. Por favor, não se esqueça do que isso significa.

O mistério dos encantamentos avisa: Ler Homero e Eurípedes faz bem para a mente, o corpo, a alma.

“Ao lado do homem vou crescendo
Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente

Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas

Ao lado do homem vou crescendo
E defendo-me da morte povoando
de novos sonhos a vida.”
Alexandre O’Neill

Querida, entendo uma parte e imagino que não tenha sido fácil, tenha sido fácil e também tenha sido mais ou menos fácil, vinte e tantos anos, tempo dedicado para construir, desconstruir, sonhar, deixar de sonhar, amar, 'desamar', continuar a amar, parir, fugir, ficar, essa dança louca que às vezes nos impomos, aceitamos, queremos, acreditamos ser natural ao sairmos da casa de nossos pais – e não é, por que a vida é muito, muito mais do que isso e aquilo vivido ou deixado de viver.
Você que se diverte com minhas traquinagens e com seu ouvido biônico ouve o que digo, não importa a distância, e me olha com um jeito engraçado quando converso e surgem ideias tão minhas quanto inesperadas e não mais comenta, ao final de tão variadas conversas, só podia ser grega, mas olha e diz com seus olhos e seu sorriso de menina perdida no tempo só podia ser grega. Ah, não pense que ensaio minhas peraltices, muito menos minhas reações tão espontâneas provocadas por tantas coisas desencontradas e equivocadas do dia a dia. Apenas considero três formas de lembrar que existem freios e os uso integralmente, os considero parcialmente ou esqueço para que servem.
Meu dizer sou eu e no que acredito. No nosso último almoço, assim que conseguimos com tanto humor a única mesa vaga do restaurante lotado, com poucas palavras suas ficou tão clara a culpa que você se acostumou sentir e conheceu através de outros olhos e mente, e nessa culpa se apegou para seguir adiante. Pois, para você desejo que encontre um companheiro certo, verdadeiro honesto, com o corpo e, principalmente, a mente saudável, que a trate do jeito que você merece e que lhe ensine inéditas maneiras de melhor viver, e que esteja ao seu lado e que você esteja ao lado dele. Um pelo outro, sem outro interesse, sem outro querer.


Imagem do filme Les Demoiselles de Rochefort

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