domingo, 5 de abril de 2009

A gratuidade dos atos

Meu pai formou-se engenheiro mecânico na politécnica de Atenas, casou-se com minha mãe e os dois chegaram ao Brasil em 1953. Há muito tempo a politécnica de Atenas é a mais famosa e representativa universidade grega pela elevada qualidade de seu ensino, além de ser o centro das mais importantes movimentações político-sociais estudantis.
Meus pais não possuíam o perfil típico dos imigrantes estrangeiros que chegaram ao Brasil no começo da década de cinquenta, além de se diferenciarem pelas suas atitudes, crenças e aspirações. Eles realmente acreditavam no constante aprimoramento pessoal, na ampliação do aprendizado e com gentileza inigualável compartilhavam seus conhecimentos com todos, para que a vida e o mundo ficassem cada vez melhor.
Meu filho e eu somos privilegiados, abençoados, por termos crescido e sido guiados por duas pessoas tão queridas quanto sábias. A herança que nos deixaram é inestimável.
Ao compartilhar seu conhecimento acadêmico e profissional, meu pai propiciou a muitos gregos e brasileiros a condição de ingressarem em fábricas, principalmente, em indústrias
automobilísticas e de autopeças, nos anos cinquenta e sessenta. O mesmo aconteceu com os empregados da fábrica de material elétrico que por décadas meu pai manteve, e até a sua morte ele continuou a compartilhar sua sabedoria. É de nossas longas conversas e de seu infinito carinho, que sinto tanta falta.
Minha mãe, por sua vez, primava pelas lições diárias sobre vários temas. Desde a elegante discrição na ausência de comentários sobre relacionamentos, a alimentação mais saudável e saborosa, os comportamentos dignos, os hábitos de higiene, os cuidados com a saúde em todas as fases da vida, a delicadeza dos gestos, a descoberta de novos escritores, a leitura diária de jornais, os perfumes as tonalidades as roupas as jóias os sapatos as bolsas os penteados apropriados e belos, a arte de bem receber de manter a casa de arrumar a mesa de organizar as coisas e a vida, de ser companheira e da constante dedicação. Deles também veio a fé e a ausência de medo.

Outro dia, após o almoço na Cultura, minha mãe estava tão presente em meu pensamento, fui à seção infantil e encontrei um livro encantador feito com papel tratado, ilustrações belíssimas e letras na medida certa para um garoto em idade pré escolar, ideal para o exercício do fascínio das descobertas, do faz de conta do texto mágico das boas fábulas, além de diminuir qualquer desapontamento proveniente dos desacertos habituais de datas que ocorrem entre pais jovens e separados que tentam educar o filho. Os pais perderam o hábito de ler histórias infantis para seus filhos – as minhas estão aqui, guardadas para os futuros netos, que no mínimo terão esta avó doidinha para depois da folia lhes transmitir o amor pelos livros. Um tempo depois, soube de infeliz e pequeno comentário e de imediato pensei, puxa, mas é para desistir de tornar a vida e o mundo melhor, mas logo retomei o prumo e confirmei que cada vez mais tudo o que aprendi com meus pais é essencial. Assim, quem sabe, amanhã, ao deparar-se com futuros pais jovens desapontados com as alterações das datas de visitas aos filhos, a gentileza e o incentivo partam de quem os recebeu no momento certo, a firmar cada vez mais a infindável e atemporal cadeia de gentileza.
Ah, sim, graças a Deus existem pessoas que surpreendem, sem qualquer alarde são gentis e não querem absolutamente nada em troca. São pessoas que há tempos aprenderam que o prazer do ato gentil se realiza na própria prática.


Imagem de Bresson

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