São Paulo comemora 456 anos. Esta não é uma cidade fácil e demanda elevada capacidade de adaptação de seus moradores. Às vezes São Paulo assusta. Minha relação com a cidade é de amor, mas um amor saudoso, de outro tempo, renovado ao encontrar pessoas que fizeram parte da minha história e lugares considerados meus pelas lembranças que trazem. Na década de oitenta, a cada quinze dias, nos finais de semana, eu saia da cidade para renovar a energia e voltar com saudade. Meus destinos eram as praias paulistas, à época, pouco frequentadas e a região de Itatiaia, Penedo, aquele triângulo meio mágico formado pelos estados de Minas, São Paulo e Rio. Bons tempos. Na década de noventa, a mudança para outra cidade e a coragem de enfrentar algo jamais imaginado: Deixar a minha São Paulo. Foram onze anos de Brasília, com voltas periódicas para trabalho ou passeio. Eu tinha fome de São Paulo. A primeira vez que fiquei hospedada em hotel na minha própria cidade me senti estranha, sem raízes, pertencente a lugar nenhum. Não há lugar melhor do que a nossa casa.
A avenida Paulista é meu encanto. Era nela que grávida eu caminhava com meu pai de mãos dadas, meu companheiro no exercício diário recomendado pela médica. Era nela, também, ainda garota, que todos os domingos almoçávamos no Fasano, nas mesas instaladas na larga calçada que a Paulista tinha, sob guarda-sóis imensos. Durante anos nossos réveillons foram no hotel Maksoud, o MASP era meu museu preferido, meu primeiro emprego foi num prédio da Paulista e eu nasci bem próximo da avenida, na maternidade São Paulo. A distância entre a casa do primeiro namorado, depois marido, e a minha casa era a avenida Paulista: eu morava no começo da avenida e ele próximo do final, na rua Sergipe. Nem as avenidas amplas e retas de Brasília – deliciosas para dirigir antes dos insuportáveis radares – conseguiram tirar a Paulista de meu coração. Só o inigualável céu de Brasília para me consolar.
E por falar na maternidade São Paulo, outro dia li um texto, transcrito abaixo, que me deixou preocupada: Onde serão guardados todos os registros dos nascimentos ocorridos lá? Há um processo para o tombamento do prédio, que vai contra o forte interesse de construtoras para sua demolição.
Eis o texto, que também conta uma parte da história da cidade :
"Memória da Maternidade de São Paulo - Eduardo Graeff
A data de aniversário da cidade é boa para reproduzir o texto que a pesquisadora Maria Lúcia Mott nos enviou faz uns dias. Acho que o apelo dela pela preservação da memória documental da Maternidade São Paulo pode ser estendido a todos que nasceram ou, como é o meu caso, tiveram filhos lá. Pergunta para Maria Lúcia: a quem podemos nos dirigir para apoiar a proposta de transferir o acervo da maternidade para o Centro de Memória da Saúde?
Para onde irão os documentos históricos da Maternidade de São Paulo?
Até o final do século XIX, a cidade de São Paulo não tinha Maternidade. As crianças nasciam nas casas de suas mães e, mais raramente, na das parteiras que acolhiam parturientes. Por muito tempo hospitais e maternidades foram vistos com horror, como locais de morte, devido aos problemas de infecção. Só mesmo mulheres pobres e necessitadas, sem condições de permanecerem em casa e terem ao lado uma parteira, recorriam a essas instituições.
Até o final do século XIX, a cidade de São Paulo não tinha Maternidade. As crianças nasciam nas casas de suas mães e, mais raramente, na das parteiras que acolhiam parturientes. Por muito tempo hospitais e maternidades foram vistos com horror, como locais de morte, devido aos problemas de infecção. Só mesmo mulheres pobres e necessitadas, sem condições de permanecerem em casa e terem ao lado uma parteira, recorriam a essas instituições.
Segundo alguns autores, em 1894, o médico Bráulio Gomes, se deparou no meio da rua com uma mulher que estava dando à luz. Penalizado, levou-a para a sua própria residência onde deu toda assistência. Naquele mesmo dia organizou uma reunião e convidou um grupo de senhoras para participar de uma subscrição para criação de uma casa de assistência à mãe pobre. Fundou-se então a Associação Protetora da Mãe Pobre, a partir de donativos particulares. A entidade foi totalmente administrada pelo serviço voluntário feminino, tendo sido eleita provedora, Francisca de Campos. Tinha por objetivo acolher as mulheres pobres em adiantado estado de gravidez, ampará-las durante o parto, prestar os socorros aos recém-nascidos nos primeiros dias de vida.
A MATERNIDADE começou a funcionar na Rua Antonio Prado, atualmente Bráulio Gomes, transferindo-se em 1897, para a Ladeira Santa Efigênia, em casa doada pela Baronesa de Limeira. Pelo fato do edifício não contar com as condições necessárias para o atendimento, a diretoria da Associação decidiu comprar um terreno na rua Frei Caneca, onde funciona até hoje, e iniciar a construção de um hospital destinado ao atendimento da mãe pobre (1904). A região da Av. Paulista, recém loteada, era considera ideal pela salubridade, por estar situada na parte alta da cidade e ser pouco povoada…
O médico Rodrigues dos Santos, que muito lutou para a construção de uma maternidade na cidade, foi o primeiro médico interno. Mas não ficou muito tempo. Logo foi substituído por Maria Rennotte, primeira médica da cidade de São Paulo. Durante a gestão, Dra. Rennotte criou uma enfermaria para atendimento de mulheres pobres não parturientes, que foi posteriormente desativada. Nos quatro anos que permaneceu na entidade, foram realizados por ela mesma, ou baixo sua supervisão, cerca de 600 partos, a maioria entre eles normais, e um pequeno número de dificultosos onde foi necessário algum tipo de operação obstétrica. Em junho de 1899, Dra. Rennotte se demitiu e as Atas da Diretoria da Maternidade registram a gratidão e um voto de louvor pelos relevantes serviços prestados seja como médica interna, como pela organização da enfermaria das mulheres pobres. Já no novo prédio e com novo diretor clínico – Silvio Maia, a Maternidade passou a atender, além de mulheres pobres, as mulheres das camadas mais favorecidas, em quartos especiais. O atendimento particular das pessoas mais ricas, nessa época era raro, aumentando apenas nos anos 40. Em dezembro de 1908, a Maternidade de São Paulo inaugurou um dos primeiros cursos de enfermagem da cidade. Previa a formação de enfermeiras para atuar no campo da obstetrícia, ginecologia e cuidado aos recém-nascidos. Em 1912, o mesmo Sílvio Maia, fundou um curso de parteiras. Em 1917, num prédio anexo à Maternidade, passou a funcionar a Clínica Obstétrica da recém-fundada Faculdade de Medicina, que assim como a Escola de Parteiras, só deixou a rua Frei Caneca quando foi construído o Hospital das Clínicas, no final dos anos 30.
Na Maternidade de São Paulo – primeira da capital, talvez primeira do Brasil – se formaram e trabalharam centenas de parteiras, obstetrizes, enfermeiras obstétricas e médicos, que não só ajudaram mães a ter seus filhos, como também a escrever a história da obstetrícia brasileira. Pelos jornais verifica-se que a Maternidade de São Paulo fechou. Que da noite para o dia, uma biblioteca desapareceu… Todos sabemos das condições precárias de atendimento ao parto e falta de leitos nas maternidades na cidade e as conseqüências que isso tem para a mortalidade de mães e bebês. Mas aqui quero chamar a atenção para outro problema, para outras perdas: a da história da social de São Paulo.
Em 1999 tive a oportunidade de conhecer o precioso acervo da Maternidade de São Paulo. Basicamente consultei três tipos de documentação – os livros da biblioteca; as Atas da Associação; e os livros de registros de nascimento, organizados por ano, contendo entre outros dados a data de entrada e saída da parturiente, data e hora do nascimento, sexo, tipo de parto, profissional que fez o parto. Verifiquei, porém, que existia ainda um grande número de livros encadernados contendo os registros clínicos desde a fundação da Maternidade. Estavam lá informações sobre as condições das parturientes e dos recém-nascidos, antes e depois do nascimento, sobre os procedimentos, sobre os profissionais que fizeram o parto, etc. – ou seja, um século da história da Obstetrícia brasileira.
A Maternidade de São Paulo foi vendida dia 21 de janeiro. Independe do quem venha ser o novo dono, é necessário se salvar não só a história da entidade ou da Obstetrícia, mas da saúde pública, das entidades voluntárias, a história social de São Paulo, o que torna o acervo, patrimônio de toda a população. Porque não tornar esse acervo um bem público? O Centro de Memória da Saúde, do Instituto de Saúde-SSESP, que está inaugurando um novo arquivo de 660 m2, criado para acolher acervos sobre a História da Saúde em São Paulo, se coloca à disposição para preservar e organizar a documentação, possibilitando o acesso a todos os interessados. Fica aqui meu alerta, esperando que parteiras, enfermeiras, médicos, funcionários, usuários, arquivistas, historiadores, autoridades, etc. – se tornem madrinhas e padrinhos desse importante acervo.
Maria Lucia Mott é doutora em História pela USP e pesquisadora do Centro de Memória da Saúde do Instituto de Saúde-SSESP"
Um comentário:
"Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas...
... E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso"
Sampa, do baiano Caetano Veloso
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