quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A alma imoral

Em novembro de 2007, minha amiga-mana, que mora no Rio de Janeiro, mandou de presente por sedex o livro A Alma Imoral de Nilton Bonder. Leitura benvinda, ideias aparentemente antagônicas e paradoxais, que em parte me lembraram algumas obras de filosofia devoradas com prazer pelo bom senso que propagavam.
Há no texto entendimento diferenciado sobre o certo e o errado, o bom e o correto, o correto e o justo, a obediência e a desobediência, a tradição e a traição e a alma, ao poucos, deixa de lado sua conceituação ligada à pureza, para assumir sua ousadia, sua capacidade de transformação.
Um tempo depois, Clarice Niskier estreou sua peça homônima no Rio de Janeiro, minha amiga-mana assistiu e telefonou para que eu não perdesse a apresentação dessa peça em São Paulo.
Há meses o monólogo A Alma Imoral está em cartaz no teatro Eva Herz, na livraria Cultura, e há meses eu ensaio minha ida, postergada por uma série de tentos que dou para colocar a vida no compasso querido. Na segunda passada, após o almoço, providenciei o ingresso e na quarta à noite eu fazia parte da platéia encantada com Clarice e com sua adaptação do texto de Nilton Bonder.
Clarice se apresenta como judia budista, para desespero de dona Léa, a quem a atriz responde através da peça com maestria.
Clarice Niskier passou a chamar minha atenção no filme Feminices (2005), de Domingos de Oliveira, pelo seu personagem Eugênia, desempenhado de maneira natural e convincente.
Hoje, no teatro, está uma mulher de cinquenta anos que se entrega, despojada, afetiva, generosa em seu ofício, emocionalmente envolvida com o texto, bem humorada nas piadas tipicamente judaicas, nua em cenário também nu, que tem como único figurino um tecido preto que utiliza de acordo com o texto e em muito se assemelha ao padrão da vestimenta grega clássica. A nudez de Clarice não é amoral, nem imoral, tampouco choca ou agride. Ela assume a própria alma essencialmente livre, plena de imoralidade sensata ao trair a tradição, ao transgredir para evoluir e nos transmitir a noção da perpetuação através da ruptura. Segundo o autor do livro “era importante que a nudez não fosse o objeto do olhar de todos e Clarice conseguiu. Ela reflete a ousadia do texto, cenicamente, com a nudez. E todos entendem.”
Do começo ao fim da peça ela fala conosco. No início, com todas as luzes do teatro acesas e antes do término da peça, entre uma parábola e outra que ela nos conta, ao atender, por meio de uma única palavra do texto dita por qualquer um de nós, a repetição das partes que mais nos interessaram. Um monólogo mais comunicativo do que muitos diálogos que, às vezes, insistimos em manter.
 
Toda a compreensão que temos dos outros deriva de nós mesmos. Quando nos identificamos com alguém e podemos aceitar sua forma de ser, significa que encontramos em nós mesmos elementos semelhantes ao outro. Identificamo-nos com os outros quando entendemos existir em nós as mesmas limitações, angústias e ansiedades que experimentam. Por esta razão, para que este mundo seja mais tolerante é fundamental que as pessoas se conheçam mais. O autoconhecimento é um dos movimentos políticos menos reconhecidos e computados nas análises das forças que transformam este mundo. A paz só é possível entre pessoas que se conhecem.

Nossa tarefa é procriar e também transcender a nós mesmos rompendo os limites. Ao transcender os limites, muitas vezes traímos a tradição e criamos a condição vital para a continuidade da nossa espécie. A alma imoral, seria a alma transgressora, traidora dos parâmetros existentes, que nos impulsiona para o futuro e alicerça a evolução.

Não existe tradição sem traição, assim como não existiria traição sem tradição, duas palavras com escrita e fonética tão semelhantes quanto são interligadas em seu significado mais profundo.

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