quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Culpa e reparação

"A brutalidade de nosso desejo sempre nos
deixa a tarefa de reparar o objeto desejado

Estreou na sexta passada "Desejo e Reparação", de Joe Wright - uma adaptação, essencialmente fiel, da obra-prima de Ian McEwan, "Reparação" (ed. Companhia das Letras). O filme recebeu o Globo de Ouro para melhor drama e será certamente um sucesso de público. O livro de Ian McEwan é já um clássico e um best-seller. Por quê?
Certo, Joe Wright fez um filme maravilhoso, e McEwan é um dos melhores escritores do momento. Mas não é só isso. Acontece que, na tela ou nas páginas, a história contada revela e ilustra um canto ao mesmo tempo escuro e familiar da subjetividade de todos nós, ou melhor, como se diz em psicologia, um mecanismo psíquico que governa nossa vida muito além do que a gente pensa.
Resumindo: uma menina, dotada de uma certa predisposição artística e inspirada por uma paixão amorosa e pelo ciúme inconfessável que essa paixão produz, faz uma sacanagem que estraga radicalmente a vida da irmã assim como a do jovem que ama essa irmã e é amado por ela.
A menina, ao crescer, tenta expiar sua culpa e descobre que ela poderá remir-se escrevendo não tanto a verdade do que aconteceu, mas uma história, um romance. É de uma vida dedicada à literatura que ela esperará a redenção: um romance reparará, enfim, o ato funesto que ela cometeu. Os distribuidores brasileiros do filme mudaram o título de McEwan.
Acrescentando "desejo" a "reparação", eles fizeram uma escolha aceitável. Evitaram, em particular, a tentação de optar por algo como "Culpa e Reparação", termos ligados por uma implicação óbvia: a gente faz uma besteira, sente-se culpado e tenta acalmar a culpa reparando os danos - às vezes, trata-se de uma decisão consciente, outras vezes, nossa vida inteira se organiza ao redor de um projeto reparador sem que a gente saiba direito por quê (afinal, somos sempre culpados de alguma coisa, não é?).
Claro, a culpa pode exigir reparação, mas talvez a vontade de reparar os tortos não seja apenas a conseqüência das culpas que nos tocam por causa de nossos malfeitos. Talvez essa vontade seja algo mais radical, mais originário.
Foi uma grande psicanalista, Melanie Klein, que introduziu a "reparação" entre os conceitos da psicanálise. A idéia básica é a seguinte: um belo dia, o bebê se dá conta de que os objetos de seu amor são pessoas inteiras (por exemplo, ele descobre que não gosta apenas do seio que o alimenta, das mãos que cuidam dele etc., mas da mãe como um todo). Logo, nosso bebê começa a sentir a necessidade de "reparar" os "danos" que sua visão anterior do mundo teria causado - em suma, de reconstituir o corpo materno que ele havia consumido aos pedaços.
Isso pode parecer bastante exótico aos olhos do leigo. Mas, para entender, basta considerar que nunca paramos de oscilar entre a vontade de despedaçar o outro e a vontade de reparar os estragos. Como assim?
É simples e está no título do filme ("Desejo e Reparação"). No desejo sexual, em geral dilaceramos o outro desejado. Por exemplo, o desejo, sempre um pouco fetichista, prefere os pedaços: o decote, a voz, um olhar, a perna cortada pela cinta-liga, a queda dos rins, a forma dos lábios e por aí vai. Quando amamos a quem desejamos, o amor nos ajuda a reparar os efeitos do estilo carniceiro do nosso desejo: idealizamos o amado e a amada para que a beleza que neles enxergamos os preserve de nossa própria crueldade.
Falando em beleza, justamente, Melanie Klein e seus primeiros alunos já pensavam que talvez a vontade ou a necessidade de reparar o mundo (despedaçado por nosso próprio desejo) fosse a força que anima nossas ambições estéticas.
A incrível persistência humana na tentativa de criar algo bonito lhes parecia ser o jeito que inventamos para compensar a violência de nossa cobiça (não só sexual, aliás). Ou seja, os danos produzidos pela brutalidade de nosso querer nos dariam vontade de arrumar o mundo, de embelezá-lo, de fazê-lo ficar "bom de novo", como dizia Klein.
Em suma, talvez nossa capacidade de criar algo misteriosa e extraordinariamente "bonito" (como o livro de McEwan e o filme de Wright) seja a maneira que encontramos para proteger aos outros, a nós mesmos e ao mundo contra a "loucura" de nossos desejos.
Nota: é bem possível que nossa paixão ecológica de hoje tenha uma origem parecida. Afinal, ela tenta preservar e restaurar o que não sabemos deixar de destruir."

Texto de Contado Calligaris publicado, em 17.01.08, na Folha de São Paulo

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