sábado, 8 de março de 2008

Útero virado

Hoje é o dia internacional da mulher.
Decidi que somente comemorarei esta data se criarem o dia internacional do homem.
Afinal, sou mulher, quebrei tabu e fui a primeira executiva de um forte conglomerado financeiro. Por muito tempo trabalhei duro e bem mais que meus colegas da predominante ala masculina, sempre baseada no respeito, na competência e na dedicação extrema.
Enquanto isso, fui mãe e filha, tive cólicas, hemorragias, câncer e coração partido, fingi que esqueci sonhos e expectativas, sempre em prol da melhor rentabilidade, não minha, mas da empresa e a manutenção do emprego.
Infelizmente não abandono, fui e sou fiel ao homem que amo, ao filho que fiz, aos meus pais e aos meus princípios.
Acredito, confio e faço um esforço danado para manter o coração bom.
Por respeito e honestidade, nunca traí ou tirei homem de outra mulher e tive minhas mazelas com dignidade e sem alarde.
Briguei em favor das pessoas que integraram as equipes que chefiei e por muitos anos tive a responsabilidade integral e solitária de homem da casa, sem a contrapartida de qualquer direito que essa difícil posição costuma trazer.
Concedi uma imensa folga ao ex-marido-pai e criei o filho sozinha sem mesada e sem qualquer apoio; cuidei da mãe sem mais ninguém para dividir o emocional e o financeiro, os quereres e os mandos.

Meu pai era engenheiro mecânico e tinha fábrica, mas não deixou herança que garantisse meu papo para o ar, nem a possibilidade de seguir devaneios que não gerassem bom salário no final de cada mês.
Apesar de na casa de meu pai ter tido vida e educação de princesa privilegiada, aprendi a arregaçar as mangas e contornei o insuportável. Sem exagero, tubarões ferozes e inescrupulosos vicejaram soltos nas águas pelas quais passei. Enfrentei cliente armado e insatisfeito com os erros cometidos por outra área, mas tenho medo de barata. Rodei trezentos e sessenta graus com o carro e aterrissei na pista contraria, mas não sei andar de bicicleta. Arma foi apontada na minha cabeça e fui refém de roubo durante quatro longas e assustadoras horas, mas choro quando assisto a filme triste.
O filho se formou, viajou para a Europa duas vezes e não contei com apoio de quem quer que seja para pagar um único centavo de seus gastos durante mais de duas décadas.
Até bem pouco tempo, todas as minhas escolhas foram em prol dos outros, algumas condicionadas desde que nasci, e nisso fui mulher ao extremo.
Nas aulas de Direito Civil da faculdade, também ensinei meus alunos sobre os incapazes: Nós, mulheres, éramos consideradas relativamente incapazes e dependíamos do aval do pai ou do marido para tudo.
Hoje, em determinadas situações, ainda somos consideradas incapazes de fato.
E apesar de tudo, das missões cumpridas e de todo esforço dedicado, não comemoro esta data.
Não uso burca, não tive meu clitóris castrado, não fui criança ou jovem estuprada pelo pai e prostituída em alguma cidade, nem servi de diversão em presídios abarrotados por animais enfermos dentro e fora das celas.
Hoje é o dia internacional da mulher.
Todas as mensagens que recebi, e não foram poucas, vieram de outras mulheres.
Não sei por que não comemoro.


Foto de Robert Doisneau

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