sábado, 29 de março de 2008

Dia leve

Percebi que algo estava meio esquisito quando perguntei o preço do carrinho de feira.
O dia começou com o passeio do cão e prosseguiu com o pastel. Pararia no pastel e no caldo de cana com abacaxi e partiria para o ar condicionado do supermercado - e sua oferta de produtos caros, passados e com baixa qualidade - se a calma que senti na feira não fosse tão intensa.
No início ouvi o comentário da moça que vendia ervas e temperos: São dez horas e tudo vai bem, sem qualquer assalto, sem violência.
Não resisti às frutas e verduras que estavam tão frescas, coloridas e redescobri o prazer de comprar em feira livre.
Estive em várias barracas e não considerei uma única para as frutas e outra para os legumes e verduras (escolher uma única barraca de frutas – sempre a compra mais cara – é opção segura, pois garante a entrega de todas as compras pelo garoto que auxilia na barraca), pechinchei preços que considerei excessivos, aprendi com um senhor japonês o segredo para fritar lulas sem que virem borrachas e peixes que não fiquem encharcados, desisti de comprar um carrinho de feira que não teria qualquer resistência a algo a mais do que três dúzias de laranjas e dois quilos de batatas e comparei o preço das sacolas de lona. O avô paterno do meu garoto tinha metalúrgica que fabricava carrinhos de feira e outros produtos domésticos e nem o de pior qualidade, o mais descartável, possuía as características dos carrinhos de feira ofertados hoje. No final da folia, duas sacolas recém adquiridas bem pesadas. Ah, mocinha, e agora? Deixar tudo e buscar o carro nem pensar, por que não haveria lugar para estacionar. Aceitar a oferta dos garotos carregadores não seria prudente e seguro. Bom, e com você mesma, arregace as mangas e siga em frente.
Parei diversas vezes no percurso de três quarteirões e em cada pausa curti o cenário, reparei em novos detalhes, observei as pessoas e imaginei suas histórias. Vi o casal de idade que passeava com quatro cachorros e a senhora que segurava as guias de outros três. É cachorro demais, mesmo para quem gosta. Senti e agradeci a sincera gentileza da senhora simpática com uniforme que ofereceu ajuda para seguir mais adiante – foi uma mulher que quis dividir o peso! Lembrei dos meus três anos de idade e do quanto dificultei a vida de minha mãe durante as feiras de cada semana. Eu e meu mini carrinho de feira de madeira vermelha a querer colinho e a maneira de minha mãe contornar a situação com o colinho fracionado e delimitado por esquinas – levo você até a próxima esquina e você caminhará as duas seguintes. Eu não estava cansada, era manhosa e queria aquele colo tão gostoso. Senti saudade de minha mãe. Aliás, na barraca de peixes me surpreendi com a artimanha preciso de peixe bom para uma senhora de idade; isso foi o que falei a maior parte da minha vida: Preciso de coisas de boa qualidade para a minha querida senhora de idade.
Ao chegar ao prédio encontrei o porteiro que solicito levou as sacolas até o elevador, sem deixar de comentar sobre o peso, sobre o percurso que ele havia feito: que pena, arrodiei pela avenida e não vi a senhora descendo a rua, e sobre um carregador que roubou a senhora que morava no apartamento 81.
Guardei na geladeira os produtos mais perecíveis e resolvi levar coisas para o conserto: Três pares de sapatos pretos, a haste dos óculos usados em casa, a troca das baterias de dois relógios e a alça da bolsa de pele de crocodilo de minha mãe.
O ajudante do sapateiro disse que a bolsa e o sapato de verniz não teriam conserto. Perguntei pelo sapateiro, um senhor ruivo e atencioso de quem não sei o nome, e o ajudante me disse que ele estaria tomando um lanche na padaria da esquina. De repente, o sapateiro voltou da clínica onde fez uma endoscopia para acompanhamento da cirurgia do estômago, examinou a bolsa, os sapatos, garantiu um bom serviço e cobrou barato. Eu não sei o nome desse senhor, mas sei que operou o estômago. Essa é uma das minhas características: Aprendi a ouvir o outro e a criar sincera empatia instantânea. Vá para casa descansar, meu senhor, faz o que aqui, depois de tomar anestésico por conta do exame?
Enquanto eu esperava a troca das baterias dos relógios surgiu uma senhora nascida em Nova York, magra e alta, com os olhos verdes, os cabelos compridos e grisalhos presos num coque e um sotaque irresistível a reclamar do calor. Trocamos idéias sobre aquela cidade e obtive dicas preciosas e inéditas. Fui ao supermercado e contei com o gentil e imediato acompanhamento do entregador – em detrimento das caixas de compras que lá estavam para serem entregues – apesar de já ter ultrapassado seu horário de trabalho. O cão, com minhas constantes saídas e chegadas, estava com a cara triste, se sentindo de lado e mereceu um agrado: O levei comigo para um café ao ar livre e mais diversão com a observação das pessoas e suas vidas imaginárias. Imaginar é ser livre. De lá, fomos ao petshop para o banho e a gravatinha que penduram em seu pescoço. Esperei e quis que ele me visse através da janela que separa os lavatórios da frente da loja, por conta da cirurgia que ele sofreu mês passado. Enquanto isso, apareceu um divertido lhasa, e seu dono também resolveu esperar. Ele é químico e dono de uma farmácia homeopática no bairro, ensinou-me mais sobre alimentação equilibrada e a farmacopéia natural, além das inevitáveis coincidências que ocorrem entre pessoas que engatam uma conversa sobre vários assuntos que fluem naturalmente: Ele nasceu em Poços de Caldas – cidade que gosto e onde, durante anos, passei minhas férias escolares de julho, é sagitariano e tem o tipo sanguíneo A negativo. E quem informa o tipo sanguíneo na primeira conversa? Ora, quem leu sobre a melhor alimentação de acordo com o tipo do sangue. Somente quando me despedi nos apresentamos e percebi que, às vezes, esse negócio de nome não é necessário. Paquera, pensará a mente tendenciosa. Não, em absoluto. A paquera estragaria a boa conversa. Esquecemos com facilidade que é essencial exercitar a capacidade de ouvir; e para isso, é necessário abrir-se e admirar a realidade e a verdade do outro.
O meu dia foi calmo, leve, produtivo e simples, como a vida deve ser. É fundamental uma pausa para deixar de lado a competente persona profissional e resgatar a essência humana. Pena que isso dura pouco, ou não: Será muito mais interessante retomar a maratona sem perder esse lado recém descoberto.
Imagem de Mário de Biasi.

Nenhum comentário: