sábado, 31 de janeiro de 2009

Reflexo na alma

"Conhece-se a beleza dádiva dos deuses por aquilo que
ela produz na alma dos homens.
Quem é possuído por ela entra em êxtase:
cessa o riso, cessa o choro, o pensamento para
a fala emudece
É mística.
A alma está tomada pela felicidade
da tranquilidade absoluta.
Era assim que se sentia o Criador ao contemplar,
ao final de cada dia de trabalho,
o resultado da sua obra:
'Está muito bom!'
Do jeito que deveria ser!
Nada há de ser modificado!
Amém!"

Rubem Alves
Imagem de Paul Outerbridge

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Away from life

Costumo falar sobre bordar e refiro-me ao mais fino bordado feito com esmero sobre tecido nobre, minúsculos e perfeitos pontos coloridos em alto relevo que enchem os olhos, deixam a alma mais leve. Bordados parecidos com os feitos no século retrasado pelas rainhas e princesas, iguais aos que minha mãe desde moça fazia. Muito caprichados. Belíssimos ornamentos surgidos da união de vários fios e criados por mãos especiais. Penélope e suas teias. Bordar parece coisa de mulher e não vai aí qualquer preconceito ou sexismo, mas tem que ser mulher – e não é toda a mulher que conhece esta arte tão especial - para suavemente bordar partes, aparar fios, unir interesses e aliviar tensões. Falo em bordado no trabalho ao referir-me ao melhor conserto do estrago criado por melindres desnecessários, confusões alimentadas, egoísmos, inseguranças e atitudes irascíveis dos que não aprenderam a bordar. Para bordar é necessário sabedoria ao conjugar os verbos abnegar e doar, há que se ter o dom: Entregar-se para realizar o melhor.
Alguns livros, quadros, filmes parecem bordados. Seguem longe do comum e abordam temas difíceis com delicadeza única.
Assisti a três filmes com a canadense Sarah Polley e confesso que no início não gostei de suas personagens. Fui tão tola. No ‘The secret life of words’ (2005), que achei meio parado pesado, deixei de perceber a sutileza da atriz ao contracenar com Tim Robbins; e no ‘My life without me’ (2003) fiquei mais impressionada com o câncer terminal da jovem mãe de duas pirralhas e com a única paixão surgida em tempo tão inadequado, ou, por outra, no tempo mais oportuno e exato. Nesses dois filmes Sarah impõe sua própria cadência. O terceiro filme, ‘The adventures of Baron Munchausen’ (1988), é encantado. O que eu não sabia quando apreciei o fino bordado ‘Away from her’ (2007), é que a direção e a adaptação
do roteiro são de Sarah Polley.
Eu fiquei impressionada com a beleza de Julie Christie – mais bonita agora, como Fiona, do que como a jovem Lara de Dr. Givago – com o amor dedicado e abnegado de Gordon Pinsent (Grant) e com a vivacidade e a resiliência de Olympia Dukakis (Marian). Os três bordados pelas mãos de Sarah.
Conheço algumas pessoas que se casaram, ou, resolveram morar juntas, por conta do medo da velhice, da doença e por não saberem lidar com a frase “quem vai cuidar de mim?”. Céus! Tudo é tão imprevisível, tão fora do controle.
Eu nunca vi um casal tão completo, feliz e amoroso como Fiona e Grant.
Um vivia para e pelo outro. Na feliz velhice, foram surpreendidos pelo Alzheimer que levou Fiona a uma clínica e lhe tirou a memória. Enquanto Grant, na nova condição de amigo desconhecido, tentava ajudar Fiona a se lembrar do passado, ele também observava sua mulher afeiçoar-se por outro interno enfermo chamado Aubrey. Prova duríssima.
Marian é a mulher de Aubrey e entra na trama quando Grant a procura para pedir-lhe que tire seu marido da clínica, para afastá-lo de Fiona. Por sua vez, Marian chama Grant para vida, mas parece que ele não consegue deixar a mulher que não mais o reconhece, e acredita amar outro homem. A sensibilidade de cada um pode auxiliar na descoberta do final deste filme. Foi também para tentar entender melhor clínicas e asilos, que Sarah Polley realizou esta bela obra. Acredito que concluímos a mesma resposta.
Partimos do amor nos tempos do cólera para o amor nos tempos do Alzheimer.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Aprendizado

O amor não é a recompensa pelos nossos esforços e habilidades.
O amor é o próprio esforço de compreender, aceitar e respeitar as diferenças com as quais convivemos diariamente.
Amor é o que oferecemos e não a recompensa que obtemos.

Miscelanea

Inibidor seletivo de reabsorção de serotonina, inibidor seletivo de reabsorção de norepinefrina, manteiga sem sal, farinha de trigo, ovos, açúcar, canela, chocolate, morangos e fermento. Misture a serotonina com a norepinefrina, acrescente os inibidores, polvilhe os seletivos e a reabsorção, junte aos poucos a farinha de trigo, os ovos previamente batidos, o fermento e deixe a massa descansar um pouco. Aproveite e descanse também. Bata a manteiga com o açúcar e acrescente à massa descansada, coloque os morangos, a canela e leve ao forno pré aquecido. Deixe por trinta minutos, temperatura 250º. Sirva com calda de chocolate preparada em banho maria. O tal do banho maria.
Minha querida amiga super centrada, competente, independente, conquistou seu espaço com trabalho e esforço, segura e plena de qualidades, décadas de amizade, olha para o lado, olha para o outro e sussurra pelo telefone para que as pessoas próximas não ouçam: - Hoje vou à psique.
- Como? Não entendi.
- Hoje tenho consulta na psique.
- Mas o que você tem, querida?
- Ah, ando tão deprimida. E ansiosa. Deprimida e ansiosa.
Para muitos psiquiatra é médico de loucos, de perturbados mentais, do povo que passava temporada no prédio rosa do Pinel, perto do Iate Clube do Rio de Janeiro, ou, em clínica de reabilitação com jeito de spa, em nosocômio especializado e super vigiado, tão vigiado quanto bem tratado, acarinhado esse povo sofrido, acarinhado, sofrido e tão bem compreendido o povo que está assim porque, ah, por que quer, não é?

Depressão não é doença, é frescura. Imagine. Estar deprimido, estar triste, tudo uma confusão só. Depressão não é doença, câncer também não.
Tratamento com psicólogo era coisa para criança problema, adolescente problema, mulher entediada, homem fraco e parece que evoluiu, virou coisa de moda, status – você faz análise? Há quanto tempo? Trinta anos? Por isso você está tão bem. Fulana detesta analistas freudianos – desculpe, mas o que isso significa? Em poucos minutos todos são capazes de explicar as diferentes linhas ? escolas? da psicanálise, da análise, da terapia, reflexologia, acupuntura, esteticista especialista em florais, chacras, mapas astrais e vidas passadas. Vidas passadas? Todos foram faraós, reis, rainhas, todos, sem exceção. E como o tarô possibilita o autoconhecimento, dez sessões na psique-psico garantem leitura de cartas, mensagens de cabala e interpretação de sonhos. Anote seus sonhos. Pingue florais e anote seus sonhos. Não se esqueça do chá de amora.
Faça ioga. Primeiro aprenda a falar ioga, depois se perca nas ‘ramificações’ da boa e velha ioga. Adote um guru. Está na moda quem tem seu guru. Caminhe. Aprenda a respirar. Aprender a respirar? Afinal, o que faço nesses hum tantos anos? Diafragma, ventre, boca fechada, aberta, segure, solte, vigor, calma, iogurte fresco com mel, fibras, cada vez menos açúcar, farinha, sal, quanto menos refinado melhor, quanto mais orgânico melhor, tudo virou orgânico, não falam mais sobre os transgênicos nem sobre a vaca aloprada, a gripe aviária, o joanete.
Azeite? Gosto, uso e desde criancinha aprendi suas qualidades e o bem que faz. Concordo que é interessante reconhecer o bom azeite, mas será realmente importante usar azeite frutado no preparo de alimento assado? Conhecer o azeite coroneico, o ladolio... Céus! Será necessário ter em casa vinte garrafas de azeites diferentes, de lugares diferentes, para preparar alimentos diferentes ? Azeites de Creta, Kalamata, Tunísia, do sul da Itália. Seja enófilo e azeitófilo. Complique mais sua vida, é chique.
Antes de saber tanto sobre tantas coisas, é fundamental conhecer-se. Entender o que vai por dentro. É importante reconhecer suas limitações e pedir auxílio quando a vida parece pesada demais, ou, os fatos, a série de fatos que aconteceram afetaram muito sua vida, o seu sentir. É necessário entender o comportamento das outras pessoas e identificar o seu próprio comportamento; retirar dos ombros a culpa imprópria e desnecessária, a culpa imposta; reconhecer a manipulação; entender fraquezas e reconhecer patologias. Voltar aos tempos da faculdade, das aulas de medicina legal, aprender mais sobre psicopatias e afastar-se das pessoas frias e perversas, dissimuladas, que jamais sentirão
arrependimento e culpa pelo que fazem. Às vezes é importante a apostasia - não achei muito correto o conceito de apostasia que encontrei; eu falo da apostasia grega, que aprendi com minha mãe. É fundamental sentir empatia e encontrar entusiasmo. Gosto do significado da palavra entusiasmo.

Trate seu cão como humano, faça com que ele seja covarde, agressivo, descontrolado, neurótico e depois assista ao programa de César Milan, no animal planet. Leia os livros de César Milan, leve seu cão para uma temporada na clínica psicológica para cães que César Milan tem em Los Angeles e comente com todo mundo. Aprenda o toque no pescoço do seu cão, do jeitinho que César Milan faz na TV e não se esqueça de fazer aquele barulho diferente com a boca. Ande com seu cão corretamente. Na realidade, César Milan trata os donos e não o cão. Ele adestra humanos. Amor, disciplina e exercício. Observe o cão para aprender sobre o dono. Quem não gosta de cão, bom sujeito não é. É ruim da cabeça, ou doente do pé...

Graçolas

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Each day a realistic and small step

It seems so easy to do, as it’s easy to forget. How to help yourself with the big little things that make a huge difference in your life, without loosing your freedom, smoothly and softly ? Make a deal to yourself, try at least.
Step by step, whenever it’s possible, the way you prefer. These are some tips:
- Focus on positive self talk. Be kind to yourself. Congratulate yourself every time you take a step towards your resolution goal. Be your own best cheerleader.
- Avoid berating yourself if you should fall back or break a resolution. Just brush yourself off and start over again.
- Stick to your resolution by considering it a promise to yourself, not a test of your willpower.
- Avoid people and situations that put you in temptation’s path.
- Keep a sticky note in a prominent place so that you see it every day, reminding yourself of your resolutions.
- Be realistic. Make sure your plan is a realistic one that can fit into your lifestyle.
- Don’t count on anyone; don’t try to change other people, or other lives. This is a task between you and yourself.
- Make changes as easy and convenient as possible. Don’t waste your good energy.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Peças em movimento

Duas diversões garantidas e interessantes.
É muito bom jogar gamão, antecipar possibilidades e desenvolver estratégias.
É muito bom, também, jogar mahjong e aprimorar a atenção.
Aprendo a diversão paciente e tranquila, que independe do trabalho do corpo e exige o exercício da mente. Justo eu, que não conseguia ficar quieta por muito tempo e logo me distraia.

A garota curiosa e inquieta existe, mas aprendeu a ceder espaço à mulher mais serena, contemplativa. Ambas se completam, tem seus encantos, seus defeitos e não resistem a uma boa folia.

São Paulo, 455 anos, caótica, metrópole, bela, brasileira


































Mirta Rosemberg

In my mother’s day
women were provable.
My mother sat next to my grandmother
and both were completely of flesh and bone.

I am barely a stable outcome
of that surplus of reality.

And in the anxiety of the indefinite past,
in the durative aspect of electing,
I write now: an elegy.

In my mother’s day
women were abiding,
completely bone and flesh.
My mother put on the necklace
of silver and turquoise stones
my father had brought her from Sweden
and sat at the table like some exotic spices,
so that everything would become larger than life
and any fiction possible.

In my mother’s day, women
were a crux: my mother told
my brother and me: ‘when I came out of school,
I went to where my father worked,
in Santa Fe, and his workmates told him she’s a biscuit,
your daughter’s a biscuit, and I never knew what they meant,
saying I was a biscuit’, a sponge cake when she was very sick,
exquisite porcelain for us still,
and my brother pressing her for more: ‘And?’

I don’t know what a biscuit is. Some exotic spice,
something, in any case, special? Perhaps
she roamed delicately round the house, brushing her eighties
as one brushes a wound
with a bit of gauze.

In my mother’s day
women were very visible.
My mother looked at herself in mirrors
and I never managed to take in
her image with my eyes. She was beyond me
and I intuited her from afar like something yearned for.

Like now,
an elegy.

To the adorable little girl
fixed in the remoteness of the photo,
who at eight already seemed
larger than life: I miss you,
although I did not know you. That was before
you gave me life
in a barely natural size.

All the same,
an elegy.

And to the other one of the photo that I hope
to conserve, the beautiful woman who holds
the book before her daughter aged one year
in the sham of reading:
I love you for what lasts, and it is sufficient
to read in the present, although your star’s
gone out.

For her,
an elegy.

Now I am the photograph
and you the developing fluid. Your death
turns me into myself: like an applied science,
I am cause and effect,
trial and error, this void
of nothingness that beats against the heart
like an empty husk.

An elegy,
more and more right each time.

sábado, 24 de janeiro de 2009

A ala das perguntinhas bestas

Você já traiu? Mas que perguntinha besta. E por incrível que pareça, cada vez fico menos à vontade para responder a verdade: Não, eu nunca traí.
Quando eu digo que nunca traí pareço meio esquisita, um bichinho exótico verde com bolinhas amarelas, azuis, vermelhas e um imenso laço de fita cor de rosa na cabeça, que vive no meio da fauna homogênea xadrez preto e branco. Às vezes acho que me enxergam como alguma mártir, a mais nova aspirante a Joana D'Arc, a justiceira de plantão que segura sua espada afiada sobre as cabeças dos traidores impios e selvagens: Cortem todos os pescoços !
Mas o fato é que nunca traí, por que não tenho estrutura emocional para trair. Simples, assim.
Acho que deve ser muito trabalhoso e eu sou desatenta, distraída, careço da organização que todos que traem parecem ter. Não presto atenção aos detalhes, não seria capaz de criar apelido padrão para não escorregar no nome errado (todas as mulheres viram bebê, tchutchuquinha, meu amor ou coisa parecida e os homens são os môs, amorecos, benhês), não conseguiria mentir sobre reunião inexistente, não me lembraria de comprar perfumes idênticos, não me preocuparia com lugares diferentes, com maneiras e manias distintas, onde estacionar o carro, a logística, a criação do álibi mais que imperfeito: Olha, hoje encontrarei o Fulano e direi ao meu marido que saí para jantar com você.
Eu não suportaria o teatrinho animado na hora da traição e o pesado teatro representado ao lado do traído. É muito teatro para meu gosto, dá trabalho e eu não tenho a menor paciência para isso.
Não duvido que se algum dia eu traísse, eu teria crise de choro incontrolável e somente encontraria alguma paz de espírito ao confessar a traição. Eu sou assim, não tem jeito e não mudo. Por isso, não traio. Seria um desastre.
Ah, lembrei-me de outro motivo importante: Quem trai não tem sossego e eu preciso viver sossegada com a pessoa que amo. Eu preciso de paz.
Normalmente, quem trai teme ser traído e não consegue confiar, não abandona o constante e desgastante vigiar o outro, fica atento ao comportamento, aos menores detalhes, sofre e faz o outro sofrer. E para isso, também, não tenho a menor vocação.
Já me disseram que eu deixo solto meu amor. Deixo e isso não quer dizer que eu ame menos, que eu não dê importância ao homem que amo, ou, que eu não ligue ser for traída, muito pelo contrário: Tenho sensibilidade aguçada para sentir as menores mudanças no e do ser amado e reconheço que sofro com isso. Mas eu não acredito que a perseguição massacrante traga algum resultado. Não adianta grudar no parceiro o dia inteiro, ou, grande parte do dia, nem mesmo exercer a vigília ponderada - aquela que é acirrada, mas parece não existir. Isso é coisa de mulher esperta, experiente, que camufla sentimento e tem sabedoria de harpia.
Que tal outra perguntinha besta? Pois aí vai: Você perdoaria uma traição? Uma, só uma? Você tem certeza que pergunta sobre uma única traição? Ora, se eu perdoaria uma traição. Eu não sei e esse não saber representa imensa evolução do meu comportamento, pois antes, nos anos iniciais da vida amorosa, eu era categórica ao afirmar que jamais perdoaria ter sido traída. Hoje, eu não sei.
Ainda no campo das perguntinhas bestas, existe outra mais atual e em certos casos inevitável: Como você consegue saber que ele a trai e ainda por cima controlar essa bagunça toda? Que força maléfica é essa exercida por certas mulheres que firmam acordos com o homem que tem ao lado e assim assumem o controle de tudo? Foi ela quem deixou você assim nervoso, né? ela não lhe faz bem, meu amor; não se esqueça da hora do jantar em casa, querido; combinado: todas as noites em casa, finais de semana e feriados em casa, você dormirá sempre ao meu lado; você estará sempre comigo para que as crianças - normalmente adultos feitos - não sofram; para que os vizinhos não comentem; para que as empregadas não comentem; para que os porteiros não comentem; para que o mundo não comente e eu tenha o controle sobre tudo o que você faz, inclusive sobre o relacionamento paralelo que você mantém. Tema bem explorado pelo dramaturgo Somerset Maugham em sua obra Constantina. Infelizmente para a evolução dos relacionamentos amorosos a síndrome de Constantina - a que tudo sabia, controlava e fingia desconhecer, ainda existe.

Certas mulheres não possuem o physique du role da garota de programa. Audrey Hepburn em 'Bonequinha de luxo', Shirley MacLaine em 'Irma La Douce' e até Julia Roberts em 'Uma linda mulher'. Não tem, não adianta. Simples, assim.

Rui Pires Cabral

É o frio que nos tolhe ao domingo
no Inverno, quando mais rareia
a esperança. São certas fixações
da consciência, coisas que andam
pela casa à procura de um lugar

e entram clandestinas no poema.
São os envelopes da companhia
da água, a faca suja de manteiga
na toalha, esse trilho que deixamos
atrás de nós e se decifra sem esforço
nem proveito. É a espera

e a demora. São as ruas sossegadas
à hora do telejornal e os talheres
da vizinhança a retinir. É a deriva
noturna da memória: é o medo
de termos perdido sem querer

a nossa vez.

* * *

Mas há uma saída? Imagina
na insónia as florestas que crescem
a essas horas noutras regiões, os comboios
que as atravessam para alcançar um destino
no futuro dos outros.

Há uma saída? Imagina
a noite cheia de cidades violentas,
o retumbar das máquinas nos subterrâneos
e a chuva a cair no plástico negro
dos morangais, todo o sofrimento
e incerteza do mundo.

E de manhã, repara, está bonito
o tempo. Os amigos acordam no quarto ao lado,
descem à cozinha para fazer o café.

Mas há uma saída?

* * *
Os amigos levados pela vida
são os mais difíceis de aplacar, os mais
tiranos. Bárbaros de um país desconhecido,
bebem à taça os venenos do silêncio e crescem
desmedidamente na distância, desentendidos
da nossa solidão. E pensar que já fomos
irmãos de armas, que desenterrámos tesouros
nas mesmas ilhas, nos livros
mais inóspitos. Como são as coisas.
Terá sido tudo em vão? Dir-se-ia
que estávamos predestinados às mesmas
canções, a uma espécie mais certa de amor.
Pois sim. Nem sequer compreendemos
o que nos aconteceu.

Ano novo chinês













Em qual cidade, no bairro japonês por excelência, comemorariam o ano novo chinês? Em São Paulo, ora.
Com leveza e suavidade plenas, renovam-se os melhores desejos para este
ano novo chinês, que segundo dizem, terá o boi como símbolo.
É muito boa essa folia de renovar a esperança.





quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Calvin




Amizade pós amor

No ano retrasado, querido amigo escreveu texto sobre a impossibilidade de existir amizade entre pessoas que mantiveram relacionamento amoroso. Parece colocação pomposa, mas pensei na palavra exata e confesso que me perdi entre namorados, casados, amantes, companheiros e tantas outras qualificações que inventamos para designar aqueles que mantiveram relacionamentos tão variados quanto os existentes. Quero incluir todos os que estiveram amorosa e verdadeiramente envolvidos, e a palavra verdadeiramente não está aí para enfeite.
Ele pediu-me comentário em seu blog e eu quis corresponder ao pedido, mas parei na confusão interna que o tema causou. Lógico que sim, foi a resposta imediata. É claro que pessoas que se amaram de verdade, e por alguma razão da vida não continuaram juntas, podem perfeitamente manter boa amizade. A base não poderia ser outra que a experiência vivida.

Retomo antiga imagem que me impressionou durante o tradicional choppinho com bobagens após o expediente: Década de oitenta, a então gerente de recursos humanos, desprovida da dura couraça usada no trabalho, ao contar seus amores concluiu que seus dedos das mãos e os dedos dos pés não seriam suficientes.
Ora, sem que hoje esse comentário me cause o mesmo impacto, reconheço que continuo do jeito que sempre fui e meus relacionamentos ganham na duração, mas perdem na quantidade, limitando-se a alguns dedos de uma única mão.
De dedos para pessoas, no meu caso com tão pouca diversidade a tarefa não é nada cansativa, decidi que comentaria, não, que escreveria pura apologia sobre a amizade pós amor e confirmaria sua plena possibilidade, para horror do meu amigo, que tanto se entristeceu com o fim de seu relacionamento, a ponto de auto denominar-se caçador de zumbis. Zumbi era a ex. Não consegui escrever. Não consegui. Entendo que pressupostos fundamentais para que o amor de verdade vire amizade de verdade, são o bem querer verdadeiro pelo outro e o relacionamento ter sido muito bem resolvido e seu término ter ocorrido com honestidade, respeito e todos os cuidados dedicados para que não restem tristezas, mágoas e dúvidas.
Ano passado, fui à Belo Horizonte para reunião com cliente e com os habituais atrasos dos voos tive que dormir na cidade. Findo o compromisso de trabalho, rápido jantar, banho para relaxar, liguei para querida amiga mineira e colocamos a vida em dia.
Ela me deixou tão feliz e surpresa ao comentar sobre o novo namorado, as aulas de dança que faziam juntos, a futura casa em Lagoa Santa, o quanto ele a tratava bem e ela se sentia realizada, a apresentação à família, o carinho complementar e a realização sexual, a afinidade e os gostos parecidos, ainda mais porque eu estava preparada para consolá-la por conta do relacionamento anterior, via internet, com um americano que literalmente estagnou a vida dela por quase uma década, e a recente notícia da morte dele, por ela recebida através de um e-mail mandado por alguém das bandas de lá. Desde o começo achei estranha aquela história e, às vezes, fui dura e realista em meus comentários - não menos do que ela também foi nos pertinentes comentários que fez para mim. Passados poucos meses dessa viagem, no começo de dezembro, e-mail triste comentou sobre o fim do namoro relâmpago. Ai, meu Deus! Combinamos horário no msn e num domingo ficamos horas a conversar, os primeiros vinte minutos dedicados aos carinhosos amparo e incentivo tão necessários e o restante do tempo entremeado por gargalhadas e comentários espirituosos. Bom humor é fundamental nesta vida. Foi nessa ocasião que a pergunta voltou: Você acha que devo manter a amizade? Ah, o lógico que escrevi lá em cima virou não sei, a certeza anterior ficou meio atrapalhada e a inédita dúvida reconheceu que cada relacionamento tem suas diferenças e que a palavra depende é a mais apropriada. No caso dela, sim. É óbvio que toda a ansiedade com o americano estranho foi depositada nos ombros do moço que sabe dançar e o assustou. O coitado foi intimidado pela forte expectativa dela, para cumprir em semanas o que o outro planejou por anos, teve muito tempo e oportunidades para cumprir, mas não conseguiu. Ainda bem que minhas melhores amigas são coerentes, honestas, reconhecem seus equívocos e consertam a vida. Sei que essa amizade fará muito bem a ela e que ela retribuirá, pois é excelente pessoa.
Concluo que a decisão de manter ou não a amizade está no que foi vivido: Você teve um bom companheiro, fiel e dedicado, alguém que esteve sempre ao seu lado, principalmente, nos seus piores momentos e lhe dedicou toda atenção e carinho que você necessitou? Mentira, maltrato, traição, descaso e ofensas foram palavras inexistentes entre vocês? Você teve ao seu lado alguém que a fez crescer, que a valorizou e protegeu, que reconheceu seus medos e anseios e a ajudou a enfrentá-los? Você se sentia à vontade com ele e juntos vocês riam à toa, gargalhavam com as mínimas coisas e se sentiam leves e felizes? Minha cara consulente, se suas respostas foram sim para todas as perguntas, então, sem qualquer dúvida seu ex é alguém com bom coração e será legal vocês serem amigos. Mesmo por que o jeito de escolher amigo não mudou.
E como fica a amizade do seu amor com a ex dele? Também depende. Se a ex tem caráter é honesta e comporta-se com dignidade, prevalece tudo do jeito que está escrito acima. Afinal, fui casada, tive filho e sou excelente ex para o pai do pimpolho e, consequentemente, para a mulher dele. Sempre fui e sempre serei. Quase vinte anos de comportamento coerente e linear comprovam o que afirmo. Mas se o comportamento da ex do seu amor incomoda e entristece você, por mais amiga que a moça tente parecer e diga ser; se o seu amor recebe presentinhos, mimos, telefonemas e fotografias que ninguém em juízo perfeito mandaria; se o seu amor virou o confidente preferido para depósito de todas as mazelas da vida, do relacionamento alheio, dos problemas com filhos, ascendentes, colaterais e o papagaio, então, acredite que a ex quer excluir a própria solidão e frustração e planeja logo, logo, voltar a ser. Se isso acontecer seu amor não soube amar e, infelizmente, nunca saberá. Você seria amiga dele?

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

O meu melhor pai do mundo


Vinte de janeiro, aniversário do meu pai.
Eu amo você, papai.
Sinto sua falta.
Seu neto e eu sentimos sua falta.
Obrigada por tudo.
Obrigada.

O cuidado necessário para não magoar

Tenho certa ideia sobre a extensão da internet, por isso, em todos os lugares que estão minhas fotografias - (mais de seiscentas dispostas em sites específicos), meus escritos e os perfis disponibilizados em sites sociais - ao longo de quase seis anos, mantenho um único cuidado e não é com a minha privacidade e proteção, mas, e principalmente, com a especial atenção que dedico para não magoar ou entristecer quem quer que seja. Nunca uma única fotografia sequer foi por mim disponibilizada (nem com visualização limitada para grupo reduzido), que expusesse qualquer situação ou trouxesse desconforto e tristeza para qualquer pessoa. O impacto ao descobrir mentiras ditas e situações escondidas através de desnecessárias exposições de imagens e palavras na internet é devastador. É muito difícil, quase impossível de ser superado. Esse é o motivo do meu agir: não quero para ninguém o que senti. Com o tempo também aprendi o quanto é desnecessário e impertinente firmar relacionamentos através da internet. É muito bom alimentar seu amor e com gentileza preservar o que ele tem de melhor, por sinal, comportamento dos realmente dignos, mas a exposição não se enquadra nesses pressupostos. Educação, respeito e elegância continuam firmes na lista dos comportamentos necessários para a boa convivência neste planeta. Anomalia é causar o mal; essa é a maior anomalia de todas.

Imagem obra de Carlos Vergara

domingo, 18 de janeiro de 2009

Clarice Lispector

Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível ser sentido.
Eu não quero a verdade inventada.

Gosto muito de Clarice Lispector e identifico pedaços meus em sua escrita. Algumas mulheres escrevem com o ventre e as palavras paridas, tal qual filhos, se agrupam em generosa comunhão.
Clarice, Lygia, Lya, Adélia, Cecília, Cora e Ana fazem parte desse grupo privilegiado de escritoras, que trazem à tona a essência de todas nós.
Em setembro do ano passado fui ao Rio de Janeiro, almocei com querida amiga e à tarde tive reunião com cliente no Centro Cultural dos Correios. Antes da reunião, no tempo de espera, resolvi matar saudade do Centro Cultural do Banco do Brasil, um dos meus lugares naquela cidade, e fiquei muito feliz ao encontrar a exposição A hora da estrela, que homenageou Clarice no trigésimo ano de sua morte. Essa mesma exposição, com design de Daniela Thomas e Felipe Tassara, antes da temporada carioca esteve no Museu da Língua Portuguesa de São Paulo, mas eu não pude apreciá-la e a considerava perdida.
Fiquei fascinada. Curti Clarice, me emocionei com os trechos expostos de sua obra, observei suas belas fotografias e entendi que certas sentenças são espelho que refletem nossa própria imagem. Com reverência abri as gavetas, do que parecia uma imensa cômoda, e encontrei manuscritos, documentos originais, notas e cartas da escritora, que foram disponibilizados pela Fundação Casa de Rui Barbosa e são destinados apenas aos pesquisadores. Aprendi mais com a cronologia dessa sagitariana densa e às vezes misteriosa, tão forte quanto frágil, dual, plena.
Outro dia li entrevista de Lygia Fagundes Teles, que comprovou seu bom humor inteligente e sua leveza de viver. As duas, Lygia e Clarice, estudaram Direito, seguiram suas convicções e desafiaram padrões. Foi Clarice quem aconselhou Lygia a não sorrir nas fotografias, para que as pessoas a considerassem uma escritora competente.


Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever.

* * *

Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que a linha abordagem do português fosse virgem e límpida.

* * *

Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio. Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma ideia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento.


* * *

Essa incapacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu, por instinto de... de quê? procure um modo de falar que me leve mais depressa ao entendimento. Esse modo, esse "estilo" (!), já foi chamado de várias coisas, mas não do que realmente e apenas é: uma procura humilde. Nunca tive um só problema de expressão, meu problema é muito mais grave: é o de concepção. Quando falo em "humildade" refiro-me à humildade no sentido cristão (como ideal a poder ser alcançado ou não); refiro-me à humildade que vem da plena consciência de se ser realmente incapaz. E refiro-me à humildade como técnica. Virgem Maria, até eu mesma me assustei com minha falta de pudor; mas é que não é. Humildade com técnica é o seguinte: só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente. Descobri este tipo de humildade, o que não deixa de ser uma forma engraçada de orgulho. Orgulho não é pecado, pelo menos não grave: orgulho é coisa infantil em que se cai como se cai em gulodice. Só que orgulho tem a enorme desvantagem de ser um erro grave, com todo o atraso que erro dá à vida, faz perder muito tempo.

* * *

Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio.
Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento.
Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras.
Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a verdade. Simplesmente não há palavras.
O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também. Sim, mas é a sorte às vezes.
Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora. Simplesmente as palavras do homem.

Ressonância nuclear eletromagnética com calda de chocolate

O novo médico especialista pediu ressonância nuclear eletromagnética para entender o que acontece e decidir o que fazer. Até o dia do exame fiz uso de novo antiinflamatório, pomada fitoterápica cheirosinha e bolsa gelada. Sem salto alto, nem ausência total de salto, somente sapatos com saltos de três centímetros – moleza. Além da recomendação expressa de respeitar meu conforto: se doer para.
Marquei o exame para a noite de sexta feira, após o expediente. A única orientação foi o jejum duas horas antes da ressonância. Naquele dia, durante o almoço-piada com as meninas, ouvi comentários sobre crises de claustrofobia, pavor e anestesia para enfrentar a situação. Não me impressionei por que não temo lugares fechados, nem exames diferenciados, desde que me expliquem o que e como será feito. Se eu aprendo o procedimento, ou parte dele, faço questão de colaborar para que o resultado seja bem definido e eficaz.
Ao deixar o escritório, já bem
atrasada, lembraram-me sobre o equipamento de ressonância que pegou fogo, seguido do comentário principal: Bem na hora que uma mulher fazia o exame. Brincadeirinha? Não, aconteceu mesmo. Vi as fotos, acompanhei parte do caso, mas é lógico que eu havia me esquecido desse detalhe até a carinhosa recordação quarenta minutos antes do meu exame.
Questionário de risco preenchido e lá fui eu para o túnel do tempo, apelido carinhoso que dei para aquele aparelho. Olhei a marca, não era a mesma do incendiado. Cumpri o jejum, nenhum lanchinho três horas antes do exame, mas não deixei de beber água. Com o calor que fazia nesta terra, passar sede estava fora de questão.
Estranhei quando me deram protetor auricular. Ah, outra descoberta: Você tem tatuagem? Então, segundo o enfermeiro que me auxiliou, durante o exame você sentirá a área tatuada queimar, mesmo que a sua tatuagem esteja na ponta do seu nariz e a ressonância seja feita no dedão do seu pé. Se queimar avisa, ta. E quem consegue avisar alguma coisa com aquela barulheira toda?
Nada de claustrofobia, anestesia, fogo ou medo. Seu eu senti a pele tatuada queimar? Não. Acho que a tinta que usaram na minha tatuagem não tinha chumbo, ou qualquer outro metal, que costumam misturar para agregar bela arte aos nossos belos corpos (não acredito! você tem tatuagem?!)
O duro da ressonância nuclear eletromagnética – e eu desconhecia esta característica – é o barulho que a máquina faz durante o exame. Parece o som de um bate-estaca incessante e cadenciado localizado a poucos centímetros dos ouvidos. Não adianta protetor auricular, não adianta tentar cantar mais alto, nem deixar seu corpo e realizar viagem astral para Shangrilá com conexão em Timbuctu, que a barulheira continua. Continua e, por incrível que pareça, dá sono e entontece. O quase dormir, estado no qual entrei durante o exame, segundo a biomédica que lá estava, é natural. Será essa a mesma razão que faz com que crianças deitadas em cadeiras ou bancos improvisados, durmam em plena festa super barulhenta, enquanto seus pais, momentaneamente, se esquecem que tem pimpolhos? Será barulho intenso o motivo que deixa os dervixes em transe? Mas eles rodam, rodam e rodam ao som de tambores bate-estacas ritmados, e eu não dei uma rodadinha sequer. Saí do túnel do tempo tonta, sonolenta, desnorteada e com enjôo. Dirigi para casa desse mesmo jeito e cheguei direitinho porque meu anjo da guarda é muito bom, a Paulista é uma reta e tem faixas bem definidas, o carro que ia a minha frente não tinha pressa alguma e seguiu até o final da avenida na pista da direita, bem ao lado da faixa exclusiva para ônibus. Acho que aquele motorista também fez ressonância no mesmo dia. Janela aberta para entrar ar fresco, som suave para aliviar a tensão, algumas orações pelo meio do caminho e cheguei bem. Cansada e bem. Se dirigir, não beba. Se fizer ressonância, não dirija,

Passada a brincadeira entrarei na fase do resultado. E quem sabe qual tipo de folia será.

Imagem de Norman Rockwell

sábado, 17 de janeiro de 2009

António Ramos Rosa

Sem confidências sem visões reveladoras
entro num domínio imediato e sinuoso
Escrevo na penumbra da madeira com um ímpeto animal
Inundo-me de uma luz unânime Sou vosso
Quanto eu escrever que seja o cimo ignorante
do bem-estar Que os braços e os joelhos
digam o vagar que brilha em redondez
Que a atmosfera clara cintile e se condense
nas ondulações do repouso e no fulgor das frases
E que as palavras tenham o murmúrio de arvore
dose de águas vivas e as sombras em sossego
E o vento fragrante que liberta e arrebatarea
vive o gozo de ser um amante iluminado

* * *

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

* * *

Ofício que vem da privação e de um excesso
que pulsa como um ninho que se abrisse ao âmbito
Toda a ignorância saboreia as substâncias escuras
que nascem para a claridade do fundo de si mesmas
O lugar vão tomando a prumo e em densidade
como um arvoredo na brisa de uma ciência branca
E assim todo o trabalho é a penumbra estremecida
em que se aprofunda o centro actual de uma idade antiga
Assim se está na luz das coisas vivas
e através de uma negrura mineral vêem-se os olhos líquidos
quase amarelos ou vermelhos oscilantes
Atónitos no doce movimento
já não somos mais do que a frescura sem idade
que nos dá altura e sombra e insinuação perfeita
de animais na folhagem num alvor de fresca paz

* * *

Eu vi o seu sorriso sob a sombra das folhas
e vi-o adormecer. Senti que mergulhava
em plácidas águas. Um tesouro
fulgurava entre as pedras e os limos.
Que tranquila a paixão, toda silêncio e luz!
Como um grande barco verde a folhagem navegava.
O coração do estio pulsava nas cigarras.
O sorriso do deus era um começo infinito.
O desejo no sono abria-se completo
numa corola de água, fogo e ar.
Os símbolos desfizeram-se em imediatas evidências.
Estávamos no seio da realidade ardente.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Aniversário e amor incondicional

Aniversário de filho é coisa séria. Aniversário de filho adulto, então, requer comportamento especial, sentimento diferenciado.
Dentre os rituais inventados ao longo da vida, mantenho os que fazem bem e não demandam sacrifício. Ritual chato, sem conteúdo e desnecessário, é descartado e esquecido.
Há alguns anos, no aniversário do meu filho, volto no tempo e revivo o dia do seu nascimento, a hora exata de seu aparecimento neste mundo. Esqueço quaisquer incômodos, dores e chatices que todo parto tem e novamente dou à luz minha melhor parte. Confirmo, reafirmo que outro filho não teria e que se me fosse dado escolher o filho que eu queria ter, seria esse mesmo, o que me foi emprestado para parir, criar e fazer por ele o meu melhor; não por que ele seja perfeito, o exemplo de filho que toda a mãe sonha ter, mas porque o conheço e o amo e com ele aprendi o real significado do amor incondicional. Assim, do exato jeito que ele é: Pleno de erros e virtudes, qualidades e defeitos, humano, egoísta, dedicado, simpático, solidário e com especial vocação para agregar pessoas. Com a parte de mim recebida - como, às vezes, me reconheço em você, meu filho, e a parte recebida do pai – como você se parece com seu pai. Lógico que a entonação da voz varia de acordo com a frase dita.
Para você, filhote, desejo o melhor. E que você tenha filhos bem parecidos com você e um tanto comigo, para que você possa ser o paizão que eu imagino que você será, e para que eu possa reconhecer a herança genética que terá em mim o ponto de partida conhecido.

Anomalias e esquisitices

Impossível não pensar em você. De onde veio isso? Não parece, nem um pouco. Letras juntadas à toa, sem conteúdo, sem base, nem verdade.
Pensar é o agir interno que antecede a ação imediata, a realização.
Mas por que escrever isso? E desejar bom ano? Desejar bom ano e retirar o desejo, então? Não é normal. É querer o mal.
O fazer e desfazer o feito, mesmo que o feito seja uma vírgula, um fio de cabelo, um nada no meio do tudo. Ainda mais quando o tudo é nada. Que nada.
Sorri a moça encantada: Obrigada.
Licença. Entre acanhada e educada responde: Desejo o mesmo. Será?


domingo, 11 de janeiro de 2009

Intimate bestiary


If someone wanted to be a tortoise
it would be me:
to fashion from a conical section
the prehistoric hub of my election
lodged in the dorsal spine.

Being a tortoise
has something ideal:
it sports wrinkles from its youth
and in a sense literally real
grows bigger with the years
– more years
more bulk.

Post-matrimonial,
without family ties
once its eggs are laid
like each and every woman
naturally daughter of the moon,
nevertheless
not a single schism
between her and her hearth gods lies.

With all these lows and highs,
for me
who is in me
– without balm pure pressure to go –
it matters little that her progress
on the surface is slow:
that
would give endurance to me
making me able to enter the sea
– that covers two thirds of the world’s
ground –
knowing that if I go down
I gain velocity.

Mirta Rosenberg

Escolha

Apesar do medo
escolho a ousadia.
Ao conforto das algemas, prefiro
a dura liberdade.
Voo com meu par de asas tortas,
sem o tédio da comprovação.

Opto pela loucura, com um grão
de realidade:
meu ímpeto explode o ponto,
arqueia a linha, traça contornos
para os romper.

Desculpem-me, mas devo dizer:
eu
quero o delírio.

Lya Luft

sábado, 10 de janeiro de 2009

Virada do ano

Virada do ano, passagem, torturas comportamentais. Olha lá, aquela moça com blusa vermelha e saia branca; e aquele outro com camiseta amarela e bermuda branca; calcinhas rosadas, uniforme branco. A cor a indicar o desejo, a esperança renovada.
Todos aprendem mandingas e se torna mandatório comer doze uvas e guardar as sementes, comer romã e guardar os caroços, guardar folha de louro e providenciar uma carteira só para as sementes, caroços e folhas armazenadas na virada do ano.
Ansiedades e expectativas que judiam de muita gente.

Na véspera da véspera, da véspera, o trabalho intenso não deu trégua. Realmente, não parecia final de ano, a cidade adoravelmente vazia, leve, feliz. Ao descer a escada para buscar texto impresso veio a dor - e que dor! – e as chatas palavras pronto-socorro. Antiinflamatório, compressa gelada e tala. Tala. Tala coberta pela gaze especial, por que o pé com tala não coube na sandália de couro novinha e moderna que fiz questão de usar naquele dia. Dirigir com o pé acomodado na tala pode ser temerário, mas não mais temerário do que dirigir com dor antes da tala. Com a tala a dor quase cessou, mas ficou a presunção de culpa – ah, querida, não se meta em qualquer acidente, mesmo que você esteja certa, pois a bendita tala cria presunção. Essa mistura de dor e incômodo, com tanta coisa a fazer, e dois dias de licença médica que não considerei, chamaram breve pausa para recompor a coragem e respirar melhor. Café com sonho no lugar de sempre, o pé com tala e gaze direto no chão e o inédito caminhar lento. Fôlego retomado volto escada a cima e mantenho a perna esticada o máximo que consigo. No dia seguinte, tala, chinelos e eu voltamos à mesma escada, no último dia útil do ano.

Réveillon com o mesmo espírito de natal. O mesmo. À vontade, em paz, sem obrigações. Mas o filho queria reunir pessoas, queria festa, tinha razão. Em casa? Com o pé e a tala?
Comportamento padrão desconsiderado. Do mesmo jeito que a cor da roupa a torna uniforme, ou demonstra desejos, a virada do ano na praia tornou-se mania insana. Descer a serra e subir antes, ou depois, conviver com o mundo que resolve seguir o mesmo roteiro, para quê? Foi esse comportamento alterado que resultou em excelente comemoração. Por vinte e dois anos a família da namorada do meu filho passou o réveillon na casa de praia, mas desta vez resolveram mudar a sina e o jantar foi no vigésimo andar de um prédio em bairro alto, sem qualquer prédio na frente, melhor, sem nada que atrapalhasse a incrível vista de 270º desta cidade tão nossa. Os fogos da avenida Paulista à esquerda e tão próximos, à diante os fogos do Ibirapuera, do Morumbi, de outros bairros e todos nós encantados com aquela magia recém descoberta, até mesmo pelos próprios donos da casa que nunca haviam admirado a deliciosa festa de sua varanda, porque cumpriam o ritual de descer a serra e ficar perto do mar. Amigos queridos perto, violão e cantoria, leveza e alegria. Quem quer mais? Quem precisa de mais? Sem prévio planejamento, sem stress nem obrigação, foi o melhor réveillon de muitos, muitos anos.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

As razões que o amor desconhece

Você é inteligente. Le livros, revistas, jornais. Gosta dos filmes do Ettore Scola, dos irmãos Coen e do Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem o seu valor. É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego fixo, bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música, tem loucura por computador e seu fettuccine al pesto é imbatível. Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém e adora sexo. Como um currículo desses, criatura, porque diabos está sem namorado?
Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados.
Não funciona assim. Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e não-fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo à porta. O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar. Costuma ser despertado mais pelas flechas do cupido do que por uma ficha limpa.
Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai ligar e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra no armário, ele só escuta Egberto Gismonte e Sivuca. Não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro e é meio galinha. Ele não tem vocação para príncipe encantado, e ainda assim você não consegue despachá-lo. Quando a mão dele toca na sua nuca, você derrete feito manteiga. Ele toca gaita de boca, adora animais e escreve poemas. Por que você ama esse cara? Não pergunte para mim.
Você ama aquela petulante. Você escreveu dúzias de cartas que ela não respondeu, você deu flores que ela deixou a seco, você levou-a para conhecer sua mãe e ela foi de blusa transparente. Você gosta de rock e ela de chorinho, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você abomina o natal e ela detesta o ano novo, nem no ódio vocês combinam. Então? Então que ela tem um jeito de sorrir que o deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar com você. Isso tem nome.
Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso são só referências. Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca. Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera. Amar não requer conhecimento prévio, nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo o que o amor tem de indefinível. Honestos existem aos milhares, generosos têm às pencas, bons motoristas e bons pais de família, ta assim, ó. Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor da sua vida é.


Martha Medeiros

Imagem de Charles Sheeler

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Just one simple word



Mocinha e dragão

Muito já foi escrito sobre o filme Factory Girl, de George Hickenlooper, com Sienna Miller no papel de Edie Sedgwick e Guy Pearce como o insuportável Andy Warhol.
Outro dia zapeava pela HBO e vi uma cena em que aparecia o caricato Warhol, o que me fez partir para outra programação, por que sua figura não me agrada, nunca me agradou.
No entanto, semana passada, bem quando resolvi passar um bom par de horas sem nada pensar diante da TV e no aconchego da minha poltrona favorita, Factory Girl foi reapresentado e resolvi que tentaria mudar minha ideia sobre o 'mestre' tão reverenciado da pop art. Reconheço que não fui bem sucedida, ao contrário, confirmei minha aversão e ao final da apresentação chorei um pouquinho por conta da vida desperdiçada, do paradigma tão batido, da pobre menina rica usada e bem judiada.
A garota encantadora, alegre e cheia de energia, que viveu em Paris e para lá levou o artista e firmou o sucesso dele, fez com que ele fosse reconhecido, o que auxiliou a aceitação da arte de Warhol nos
Estados Unidos; que o apresentou à alta sociedade novariorquina e incrementou a venda de suas peças com a simples e mentirosa menção: “mamãe encomendou quatro quadros”, que foi transformada em musa, cultuada vulgarizada e destruída por planejado capricho, aos vinte e poucos anos morreu de overdose. Mesmo após ter voltado à clínica de reabilitação, reassumido sua vida anterior, se dedicado à sua própria arte e se casado com um dos internos do mesmo lugar que tentou largar o vício.
Sem dúvida, a carga foi pesada demais. Sienna Miller comove, Guy Pearce enoja, e um personagem chamado Billy, ninguém menos do que Bob Dylan, perdeu a chance de tornar-se o príncipe valente e único capaz de salvar a mocinha das garras do feioso e esquisito dragão. Triste.