sábado, 24 de janeiro de 2009

A ala das perguntinhas bestas

Você já traiu? Mas que perguntinha besta. E por incrível que pareça, cada vez fico menos à vontade para responder a verdade: Não, eu nunca traí.
Quando eu digo que nunca traí pareço meio esquisita, um bichinho exótico verde com bolinhas amarelas, azuis, vermelhas e um imenso laço de fita cor de rosa na cabeça, que vive no meio da fauna homogênea xadrez preto e branco. Às vezes acho que me enxergam como alguma mártir, a mais nova aspirante a Joana D'Arc, a justiceira de plantão que segura sua espada afiada sobre as cabeças dos traidores impios e selvagens: Cortem todos os pescoços !
Mas o fato é que nunca traí, por que não tenho estrutura emocional para trair. Simples, assim.
Acho que deve ser muito trabalhoso e eu sou desatenta, distraída, careço da organização que todos que traem parecem ter. Não presto atenção aos detalhes, não seria capaz de criar apelido padrão para não escorregar no nome errado (todas as mulheres viram bebê, tchutchuquinha, meu amor ou coisa parecida e os homens são os môs, amorecos, benhês), não conseguiria mentir sobre reunião inexistente, não me lembraria de comprar perfumes idênticos, não me preocuparia com lugares diferentes, com maneiras e manias distintas, onde estacionar o carro, a logística, a criação do álibi mais que imperfeito: Olha, hoje encontrarei o Fulano e direi ao meu marido que saí para jantar com você.
Eu não suportaria o teatrinho animado na hora da traição e o pesado teatro representado ao lado do traído. É muito teatro para meu gosto, dá trabalho e eu não tenho a menor paciência para isso.
Não duvido que se algum dia eu traísse, eu teria crise de choro incontrolável e somente encontraria alguma paz de espírito ao confessar a traição. Eu sou assim, não tem jeito e não mudo. Por isso, não traio. Seria um desastre.
Ah, lembrei-me de outro motivo importante: Quem trai não tem sossego e eu preciso viver sossegada com a pessoa que amo. Eu preciso de paz.
Normalmente, quem trai teme ser traído e não consegue confiar, não abandona o constante e desgastante vigiar o outro, fica atento ao comportamento, aos menores detalhes, sofre e faz o outro sofrer. E para isso, também, não tenho a menor vocação.
Já me disseram que eu deixo solto meu amor. Deixo e isso não quer dizer que eu ame menos, que eu não dê importância ao homem que amo, ou, que eu não ligue ser for traída, muito pelo contrário: Tenho sensibilidade aguçada para sentir as menores mudanças no e do ser amado e reconheço que sofro com isso. Mas eu não acredito que a perseguição massacrante traga algum resultado. Não adianta grudar no parceiro o dia inteiro, ou, grande parte do dia, nem mesmo exercer a vigília ponderada - aquela que é acirrada, mas parece não existir. Isso é coisa de mulher esperta, experiente, que camufla sentimento e tem sabedoria de harpia.
Que tal outra perguntinha besta? Pois aí vai: Você perdoaria uma traição? Uma, só uma? Você tem certeza que pergunta sobre uma única traição? Ora, se eu perdoaria uma traição. Eu não sei e esse não saber representa imensa evolução do meu comportamento, pois antes, nos anos iniciais da vida amorosa, eu era categórica ao afirmar que jamais perdoaria ter sido traída. Hoje, eu não sei.
Ainda no campo das perguntinhas bestas, existe outra mais atual e em certos casos inevitável: Como você consegue saber que ele a trai e ainda por cima controlar essa bagunça toda? Que força maléfica é essa exercida por certas mulheres que firmam acordos com o homem que tem ao lado e assim assumem o controle de tudo? Foi ela quem deixou você assim nervoso, né? ela não lhe faz bem, meu amor; não se esqueça da hora do jantar em casa, querido; combinado: todas as noites em casa, finais de semana e feriados em casa, você dormirá sempre ao meu lado; você estará sempre comigo para que as crianças - normalmente adultos feitos - não sofram; para que os vizinhos não comentem; para que as empregadas não comentem; para que os porteiros não comentem; para que o mundo não comente e eu tenha o controle sobre tudo o que você faz, inclusive sobre o relacionamento paralelo que você mantém. Tema bem explorado pelo dramaturgo Somerset Maugham em sua obra Constantina. Infelizmente para a evolução dos relacionamentos amorosos a síndrome de Constantina - a que tudo sabia, controlava e fingia desconhecer, ainda existe.

Certas mulheres não possuem o physique du role da garota de programa. Audrey Hepburn em 'Bonequinha de luxo', Shirley MacLaine em 'Irma La Douce' e até Julia Roberts em 'Uma linda mulher'. Não tem, não adianta. Simples, assim.

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