sábado, 17 de janeiro de 2009

António Ramos Rosa

Sem confidências sem visões reveladoras
entro num domínio imediato e sinuoso
Escrevo na penumbra da madeira com um ímpeto animal
Inundo-me de uma luz unânime Sou vosso
Quanto eu escrever que seja o cimo ignorante
do bem-estar Que os braços e os joelhos
digam o vagar que brilha em redondez
Que a atmosfera clara cintile e se condense
nas ondulações do repouso e no fulgor das frases
E que as palavras tenham o murmúrio de arvore
dose de águas vivas e as sombras em sossego
E o vento fragrante que liberta e arrebatarea
vive o gozo de ser um amante iluminado

* * *

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

* * *

Ofício que vem da privação e de um excesso
que pulsa como um ninho que se abrisse ao âmbito
Toda a ignorância saboreia as substâncias escuras
que nascem para a claridade do fundo de si mesmas
O lugar vão tomando a prumo e em densidade
como um arvoredo na brisa de uma ciência branca
E assim todo o trabalho é a penumbra estremecida
em que se aprofunda o centro actual de uma idade antiga
Assim se está na luz das coisas vivas
e através de uma negrura mineral vêem-se os olhos líquidos
quase amarelos ou vermelhos oscilantes
Atónitos no doce movimento
já não somos mais do que a frescura sem idade
que nos dá altura e sombra e insinuação perfeita
de animais na folhagem num alvor de fresca paz

* * *

Eu vi o seu sorriso sob a sombra das folhas
e vi-o adormecer. Senti que mergulhava
em plácidas águas. Um tesouro
fulgurava entre as pedras e os limos.
Que tranquila a paixão, toda silêncio e luz!
Como um grande barco verde a folhagem navegava.
O coração do estio pulsava nas cigarras.
O sorriso do deus era um começo infinito.
O desejo no sono abria-se completo
numa corola de água, fogo e ar.
Os símbolos desfizeram-se em imediatas evidências.
Estávamos no seio da realidade ardente.

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