sábado, 24 de janeiro de 2009

Rui Pires Cabral

É o frio que nos tolhe ao domingo
no Inverno, quando mais rareia
a esperança. São certas fixações
da consciência, coisas que andam
pela casa à procura de um lugar

e entram clandestinas no poema.
São os envelopes da companhia
da água, a faca suja de manteiga
na toalha, esse trilho que deixamos
atrás de nós e se decifra sem esforço
nem proveito. É a espera

e a demora. São as ruas sossegadas
à hora do telejornal e os talheres
da vizinhança a retinir. É a deriva
noturna da memória: é o medo
de termos perdido sem querer

a nossa vez.

* * *

Mas há uma saída? Imagina
na insónia as florestas que crescem
a essas horas noutras regiões, os comboios
que as atravessam para alcançar um destino
no futuro dos outros.

Há uma saída? Imagina
a noite cheia de cidades violentas,
o retumbar das máquinas nos subterrâneos
e a chuva a cair no plástico negro
dos morangais, todo o sofrimento
e incerteza do mundo.

E de manhã, repara, está bonito
o tempo. Os amigos acordam no quarto ao lado,
descem à cozinha para fazer o café.

Mas há uma saída?

* * *
Os amigos levados pela vida
são os mais difíceis de aplacar, os mais
tiranos. Bárbaros de um país desconhecido,
bebem à taça os venenos do silêncio e crescem
desmedidamente na distância, desentendidos
da nossa solidão. E pensar que já fomos
irmãos de armas, que desenterrámos tesouros
nas mesmas ilhas, nos livros
mais inóspitos. Como são as coisas.
Terá sido tudo em vão? Dir-se-ia
que estávamos predestinados às mesmas
canções, a uma espécie mais certa de amor.
Pois sim. Nem sequer compreendemos
o que nos aconteceu.

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