sábado, 23 de maio de 2009

Algumas artes

Praticidade. Quem tem tempo a perder no corre-corre que vivemos? Temos horário para tudo, mil afazeres existentes e outros mil que surgirão ao longo do dia. Temos horário para entrar, mas não temos horário para sair do trabalho. O período do almoço curtinho, às vezes, atropelado pela fila no caixa eletrônico do banco, ou pelas calçadas apinhadas de pessoas que saem de seus escritórios ao mesmo tempo. Nesta semana almocei com meu filho e combinamos de nos encontrar no restaurante, que fica há duas quadras da Paulista. Para atravessar a avenida e percorrer quatro quadras eu levei dez minutos. Tempo demais. Por sorte deliciosos calamares fritos e quentinhos me aguardavam. Por isso é bom almoçar com quem nos conhece: Ao chegar encontramos exatamente o que queremos, pronto para ser saboreado. Sem contar a boa conversa, a leveza que surge com a troca do ambiente e os comentários animados que fazemos sobre tudo que está ao nosso redor. Mas é inevitável lembrar do relógio, mastigar rapidinho a salada, o filé de pescada com purê, dispensar a sobremesa e seguir o caminho de volta em menos tempo, não sem antes deixar um beijo carinhoso e estalado na bochecha desse garoto-homem que cresceu tão rápido.
Por ser prático todos os dias prendo meu cabelo e mantenho uma relação bem simples com esses fios com vontade própria que adornam minha cabeça. Não os maltrato com escovas, secadores, chapas quentes, nem com a infinidade de cremes e químicas existentes para serem usadas antes do xampu, depois do xampu, depois do enxágue, depois de penteados. Lavo-os de manhã, duas vezes por semana, retiro o excesso de água, deixo que sequem e os prendo em coque. Sem frescuras, sem perda de tempo. Agora, no outono, permito que o secador faça a festa durante três minutos, não mais. Assim evito o resfriado certo pela exposição durante horas ao ar condicionado.
Foi numa manhã dessas, que resolvi deixar o cabelo solto. Fiquei impressionada com o comprimento e o jeito do meu cabelo. Aqueles fios retos, compridos e volumosos não deixaram a minha cabeça do jeito que sou. Não, aquela cabeça, com aquele cabelo, não era a minha. Quis quebrar a seriedade do cabelão reto e comprido com um lenço colorido, mas desisti ao perceber que a dúvida na escolha do lenço tomaria tempo precioso. Usei a tiara mais larga que encontrei, saí correndo e senti que o cabelo estava feliz com a liberdade experimentada. Há muito tempo o cabelo feminino adquiriu simbolismo distinto, antes mesmo de Ovídio, que no século primeiro escreveu: É a singela elegância que nos agrada. Que seu cabelo não seja despenteado. As mãos aumentam a beleza ou a retiram. Há muitas maneiras de arranjá-lo; uma mulher deve escolher aquela que lhe assenta melhor, e, antes de tudo, consultar seu espelho. Um rosto comprido pede cabelos separados sobre a fronte e sem nenhum enfeite: era assim o penteado de Laodâmia. Levantá-los num pequeno coque acima da fronte, de maneira a destacar as orelhas, eis o que pede um rosto redondo. Aquela jovem deixará seus cabelos balançarem sobre seus ombros, como você, Febo harmonioso, quando sua mão segura a tiara. Uma outra os amarrará para trás, como fazia normalmente Artemisa quando, com a túnica curta levantada, perseguia a caça assustada. Cabelos armados e soltos ficam bem numa, outra os prenderá com presilhas e alças. Falta àquela o enfeite de um pente de Cilene; esta aqui quer ondulações semelhantes às ondas do mar. Mas não podemos contar os frutos do frondoso carvalho, as abelhas da Hibla, os animais de caça dos Alpes, assim como eu não posso dizer o número certo dos tipos de penteados. Cada dia aparece um novo arranjo. Um penteado negligente é tão comum que poderíamos acreditar que o penteado da véspera acaba de ser refeito. A arte apenas imita a fortuna. Assim, na cidade tomada de assalto, Iole se ofereceu aos olhares de Héracles, que disse logo: “É ela quem amo.” Assim também aconteceu com você filha de Gnosso, abandonada quando Dionísio a levou em seu carro, aos gritos de “Evoé” pelos Sátiros. Quanto a natureza é caridosa com seus encantos, pois oferece mil maneiras de corrigir os defeitos. Nós somos impiedosamente depenados e nossos cabelos levados pelos anos, caem como as folhas da árvore que Aquilão sacode. A mulher tinge seus cabelos brancos com ervas de Germânia e lhes confere artificialmente uma tonalidade mais conveniente que a cor natural. A mulher caminha enfeitada com uma espessa cabeleira que ela comprou, e, à preço de ouro, os cabelos de outra se tornam seus. Ela não se acanha de comprá-los abertamente: são vendidos sob as vistas de Heracles e do coro das Musas.
Pensei em Ovídio e suas ideias sobre o amor, seu louvor as mulheres, o prazer verdadeiro que leva serenidade ao coração e se transforma em ternura contínua e segura. O prazer praticado com constância e respeito. Não me parece um libertino, ao contrário, mas um homem gentil, de sentimento e em paz, que aprendeu os mistérios das ilhas gregas e fez deles a base de sua obra. Não discordo dele ao acreditar que o único mal proibido seria o dano, o constrangimento causado ao outro.
Lembrei-me de uma das músicas cantadas pelo meu pai sobre os cabelos naturais, encantadoramente negligentes “asta ta maláquiassu anakatemena...” Neste sábado, acordei no horário que meu organismo quis, fiz carinho e dei um beijo no filho, marquei horário para o banho do cão e lhe fiz mais carinho, liguei e marquei hora para cortar meu cabelo e fui a pé ao laboratório me submeter à lista imensa de exames, que deveriam ter sido feitos no mês passado. Ah, sim, num risco leviano e talvez calculado quebrei a rotina mensal e tão necessária de exames, porque estava cansada, porque às vezes é necessário respirar mais livremente, porque às vezes é necessário esquecer e transportar-se para outro mundo. Foi com alegria e ânimo renovado que cheguei ao laboratório, que vi os frasquinhos com tampas multicoloridas, que ofereci os dois braços para que a atendente encontrasse a melhor veia. Foi com leveza que esperei na fila dos dois banheiros para o xixi amigo e me enchi de ternura ao observar a filha que acompanhava os pais idosos: a mãe tão velhinha na cadeira de rodas e o pai com o andar inseguro, os olhinhos azuis amedrontados e tão comuns da velhice enferma, e o imenso amor que havia entre os três. Não deve ser fácil a vida daquela filha, e espero que ela aprenda a dedicar todo aquele cuidado em seu favor, e não sinta que o mundo ficou vazio, quando seus pais estiverem no céu a zelar por ela.
Na volta do laboratório encontrei meu filho e o cão na padaria predileta para um café da manhã reforçado. Depois, o cão com banho tomado, a mãe com as unhas cuidadas e o cabelo cortado, do jeito dela, com a cabeça dela, que lhe foi devolvida com as mechas naturais, livres e encantadoramente desalinhadas, iguais aos meus pensamentos.

Imagem de German Lorca

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