quinta-feira, 10 de julho de 2008

Confesso que voei

1.

Mas, se nestas seis décadas e meia
eu fui capaz de algum voo

– concedo, semelhante ao das galinhas,
isto é, rudimentar, desgracioso,
com muitíssimo dispêndio de energia
para pouca ascensão, breve e apenas
em desespero de causa;
em todo o caso uma forma de voo
pelo qual me sustentei no ar
em horas de menos peso –

devo agora, fechado o ciclo do voo,
como os pássaros pousar.

E isto não é como uma loja
que muda de ramo
ou que em fins de Dezembro
fecha para balanço.
Nem como executar
um mandado de detença.
Nem expiar a desordem
de, sendo pedestre, ter voado.
Nem um remate compulsivo
à sedição.

Pousar, é tudo. Regressar
ao afago das coisas da terra.
A terra cobrar por fim o que lhe devo
e eu cobrar dela o que me deve
desde a primeira hora.

Voei, está voado.
Nada de nostalgias.

2.

Escolho o galho
mais ajeitado à minha condição
e, como a ave a quem o voo se esgota
temporariamente, apeio-me do voo.

Assim como a ave que, acabada
de pousar, bate ainda as asas
por duas ou três vezes,
assim as bato eu.

Mas enquanto a ave as bate
como para sacudir delas
os resíduos do voo,
eu faço-o por exigência de equilíbrio:
o ramo verga, já não tenho
a agilidade doutros tempos,
cairia se não batesse as asas.

Isto é: bato-as da mesma forma que
o funâmbulo tenteia a vara
e o cego a bengala.

Para me acomodar mais facilmente
no exterior do voo.

3.

Nem o meu pouso é passageiro
como o da ave. Daqui em diante
assistirei ao decurso dos dias
pousado definitivamente.

Eis-me pois pousado, procurando
ajeitar o corpo à nova condição.

Os olhos erguidos para o espaço
donde me escorracei
para saber se porventura risquei
o cristal do ar com o meu voo.
Um arranhão que fosse, que depois dele
o cristal já não fosse cristal.

Não risquei.
Louvado seja Deus.
Depois de tanto voo desastrado
deixo o ar nítido e inteiro
como o encontrei.

(Não admira. Sempre tive o cuidado
de sacudir os pés à entrada do voo.)

4.

Não. Não é por nostalgia
que nesta hora extrema de pousar
me lembram as hábeis imprudências do voo,
as impudências, a tomada da luz.

Parece-me isto antes gratidão.

Voar foi sempre o mais útil
dos meus gestos inúteis.
A haste de feno ao canto da boca.
Um donativo à carne.
O orifício por onde se escoavam enxurradas.

Intensamente pousado,
é isto que me lembra.

2 comentários:

Anônimo disse...

Excelente o poema.
Entrei por acaso neste blog ao consultar sobre os sufixos dos nomes gregos (eu só sei o meu, que vem de Creta) e gostei das postagens.
Gerana Damulakis

'The taming of the shrew' reedited: disse...

Bem-vinda, Gerana. Obrigada pela visita e pelo comentário. Já temos em comum o gosto por belos poemas e a origem de nossos nomes.