sexta-feira, 11 de julho de 2008

Cecília Meireles

"Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim."

* * *

"Os galos cantam, no crepúsculo dormente
No céu de outono, anda um langor final de pluma
Que se desfaz por entre os dedos, vagamente

Os galos cantam, no crepúsculo dormente
Tudo se apaga, e se evapora, e perde, e esfuma

Fica-se longe, quase morta, como ausente
Sem ter certeza de ninguém, de coisa alguma
Tem-se a impressão de estar bem doente, muito doente

De um mal sem dor, que se não saiba nem resuma
E os galos cantam, no crepúsculo dormente

Os galos cantam, no crepúsculo dormente
A alma das flores, suave e tácita, perfuma
A solitude nebulosa e irreal do ambiente

Os galos cantam, no crepúsculo dormente
Tão para lá, no fim da tarde além da bruma

E silenciosos, como alguém que se acostuma
A caminhar sobre penumbras, mansamente,
Meus sonhos surgem, frágeis, leves como espuma

Põem-se a tecer frases de amor, uma por uma
E os galos cantam, no crepúsculo dormente"

* * *

"O canteiro está molhado.
Trarei flores do canteiro,
Para cobrir o teu sono.

Dorme, dorme, a chuva desce,
Molha as flores do canteiro.

Noite molhada de chuva,
Sem vento, nem ventania,
Noite de mar e lembranças"

* * *

"O olho é uma espécie de globo,
é um pequeno planeta
com pinturas do lado de fora.
Muitas pinturas:
azuis, verdes, amarelas.
É um globo brilhante:
parece cristal,
é como um aquário com plantas
finamente desenhadas: algas, sargaços,
miniaturas marinhas, areias, rochas, naufrágios e peixes de ouro

Mas por dentro há outras pinturas,
que não se vêem:
umas são imagens do mundo,
outras são inventadas.

O olho é um teatro por dentro,
E às vezes, sejam atores, sejam cenas,
e às vezes, sejam imagens, sejam ausências,
formam, no olho, lágrimas."

* * *

"É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a criação de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence."

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