quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Ninguém pode mandar no seu coração

Eu tenho, naturalmente, uma vasta correspondência. Digamos que já recebi três mil cartas ou mais. Cada carta contando um caso, um drama, um romance, uma tragédia. Pois bem. Se eu fizesse um balanço, verificaria que o problema mais comum é o seguinte: um homem e uma mulher que se amam, são loucos um pelo outro, têm certeza de um amor imortal, mas outras pessoas não querem. Então, a moça bebe as próprias lágrimas e diz ao seu eleito que sente muito mas... Pasma-me que assim aconteça, que existam pessoas que se submetem às injunções de terceiros, e que terceiros decidam de sua desgraça ou de sua felicidade. Há, também, os homens e as mulheres que chegam ao suicídio, porque os outros “não deixaram, os outros “não quiseram”. Mas, na hora do sofrer, na hora do chorar, na hora do morrer de paixão, de saudade, os outros não se mexem, ficam, de longe, assistindo, muito acima dos problemas, alheios ao sofrimento que causaram. Ótimo!
Agora mesmo, abro um envelope e leio uma carta que me chega de São Paulo, em um papel amarelo. É um leitor, e dá o seguinte pseudônimo: Teomar. Quais são as atribuições de Teomar? Apenas estas: enamorou-se de uma jovem, foi correspondido por ela. Até aí tudo bem. Com as melhores e mais claras intenções do mundo, ele propôs casamento à moça. Queria fundar seu lar, sua família, criar, para o seu amor, um clima normal, saudável, etc, etc. Aparentemente, não haveria motivo algum para drama. Mas houve. Pois se manifesta na base de uma argumentação absolutamente frágil, precariíssima, uma oposição. Vários defeitos de Teomar foram invocados, inclusive este: a idade. Ele tem, com efeito, 37 anos. Mas será isso um defeito, uma mácula, uma tara? Um indivíduo de 37 anos passa a ser, por isso, algum criminoso?
- Mas a moça tem dezessete, dezenove ou vinte anos.
Que importa? – pergunto eu. A diferença de idade, em si mesma, nada vale, a não ser quando é uma coisa imensa, esmagadora. De resto, é nesta altura da vida que o homem atinge a plenitude, em todos os sentidos. É a maturidade, a plena maturidade. Pode-se dizer a um homem, a título de restrição: “Não lhe posso dar a mão de minha filha porque o senhor está no apogeu?”
O “apogeu” é um defeito ou qualidade? Parece-me que qualidade.
Não acharam assim as pessoas ligadas à moça, que são contra o romance de Teomar. Mas isto não teria gravidade, se fosse uma oposição redutível, baseada em termos assim racionais:
- Nós somos contra, etc,etc. Mas, se você quer, paciência.
Que esperança! Ninguém quer que Teomar se case, em hipótese alguma. Ninguém admite uma transigência, uma conciliação. Não, não e não! Restaria uma atitude franca, desassombrada da moça. Mas ela fraquejou. Continua gostando de Teomar, continua escrevendo para ele. Mas, não aceita mais a idéia do casamento. Ele, então, me escreve. Poderia perguntar sobre o que lhe cabia fazer. Mas o que interessa é outra coisa ´é como agiria eu, no lugar de sua amanda.
- Muito simples, Teomar: eu ouviria as ponderações das pessoas. Se verificasse que eles não tinham razão, diria, simplesmente:
- Muito obrigada, mas caso-me assim mesmo.
Explicaria, aos mais recalcitrantes, o seguinte:
- Trata-se da minha felicidade pessoal, da minha felicidade individual, e não da de vocês. Eu tenho mais direito do que ninguém para escolher o homem que vai ser meu companheiro por toda a vida. Poderei ser feliz ou infeliz. Mas esta é outra face da questão que pertence ao futuro e eu não sou profetisa. Sei, apenas, que no momento serei felicíssima. Se vocês se opõem à minha felicidade, não devo escutar, nem levar em conta a quem deseja o meu sofrimento, a quem recomenda o meu sacrifício. Se gostam de mim, estarão a favor de um casamento que implica a minha felicidade. E, se estão contra o casamento, é porque não gostam de mim, e, nesse caso, para que dar atenção a inimigos?
Em amor, quando a própria pessoa decide,as possibilidades de ventura são bem problemáticas. E, quando terceiros interferem e resolvem, as possibilidade se reduzem a zero.


("O consultório sentimental de Nelson Rodrigues" - Diário da Noite, 1949)

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