sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Caixa amarela


Veio do Rio uma caixa amarela.
Primeiro o principal: O cartão. A querida Mana me conhece e sabe o que escreve. Mana quer que eu renasça. Mana nunca faz nada à toa.
O livro "A alma imoral" de Nilton Bonder, que Mana gostou e mandou um exemplar para mim. Está na contra-capa: "Há um olhar que sabe discernir o certo do errado e o errado do certo. Há um olhar que enxerga quando a obediência significa desrespeito e a desobediência representa respeito. Há um olhar que reconhece os curtos caminhos longos e os longos caminhos curtos. Há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade. Este olhar é o da alma."
Com os olhos fechados abri página aleatória: "Sem medo de ser perverso. Uma das formas que o mar que nos imposibilita de caminhar assume em nosso imaginário é a da perversidade. 'Não posso fazer isso' é uma expressão que nos paralisa e nos faz acampar. Magoar outras pessoas ou agir de maneira imoral para com nossa formação e edudação são argumentos usados pelo corpo constantemente. Não há, no entanto, nenhuma maneira de ultrapassar o mar sem enfrentar a possibilidade de nossa perversidade..."
O super rímel da Lâncome 'hypnôse', 'noir hypnotic'. Mana trouxe do Caribe, via Nova York. Só eu sei, querida, o que significa este rímel. Retomo, aos poucos retomo.
O primeiro sebento "Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo" de Nelson Rodrigues. Outra página aleatória com os mesmos olhos fechados: "É preciso merecer a fidelidade. A rigor, esta seção é destinada às mulheres, aos seus problemas, às suas alegrias e tristezas. De vez em quando, porém, abro exceção e respondo a uma carta masculina..." Mana foi buscar num sebo em Ipanema. Edição mais do que esgotada retornará ao Rio para que Mana também se divirta.
Aqui, igualmente, agradeço a preciosa dica de Nelson. Obrigada.
Por incrível que pareça deixei a caixa fechada até o dia vinte e oito como prometi. Ficou desafiadora sobre meu baú a me chamar o tempo todo. Não cedi.
Isso é um marco.
Resumo a história: Letras, olhar, bem querer. Tudo vinculado como deve ser.
Amizade de mana e verdadeiro carinho não reconhecem a geografia. Macaé não é ai. E nada é à toa. Obrigada, querida. Muito obrigada.

Palavras

As boas e verdadeiras palavras têm fantástica energia e são capazes de mudar o universo.
Bem-vinda e abençoada esta responsabilidade.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Seasons of Love

525.600 minutes - I mesure my life in love

Five hundred twenty five thousand six hundred minutes
Five hundred twenty five thousand moments so dear
Five hundred twenty five thousand six hundred minutes
How do you measure - measure a year?
In daylights, in sunsets
In midnights, in cups of coffee
In inches, in miles
In laughter, in strife
Five hundred twenty five thousand six hundred minutes
How do you measure a year in the life?
How about love?
How about love?
How about love?
Measure in love seasons of love.
Seasons of love.
Five hundred twenty five thousand six hundred minutes
Five hundred twenty five thousand journeys to plan
Five hundred twenty five thousand six hundred minutes
How do you measure the life of a woman or a man
In truth that she learned or in times that he cried
In bridges he burned or the way that she died
It's time now, to sing out
Though the story never ends
Let's celebrate
Remember a year in the life of friends
Remember the love
Remember the love
Remember the love
Measure in love
Oh you got to you got to remember the love
You know that love is a gift from up above
Share love, give love, spread love
Measure, measure your life in love.
Seasons of love
Measure your life, measure your life in love

Aberta para balanço

Vinte e oito minutos. Vinte e oito minutos do dia vinte e oito.
Momento do balanço.
Arvore filho e livro, entregues para o mundo.
Trinta minutos. Géiser de letras.
A vida molda. De um jeito, ou, de outro, a vida sempre molda; muda a consistência da massa, lapida a pedra, desarruma cada trigo do campo com seu vento.
Somente agora entendi que foi necessário, temporariamente, virar meio dura, meio árida para prosseguir. Aquela que prevalecia não seria capaz de manter-se sem perder seu melhor.
Foi necessário enterrar, desenterrar, exumar, vestir o corpinho frio, alvo e mole com seus últimos sopros de ar saindo pela boca e não se perder.
A vida não vem com manual, prazo de validade, certificado de garantia e possibilidade de troca, ou, devolução. Vai desistir?
Pegue ai o manual, minha filha, procure na letra ‘e’ exumação, leia o significado, a receita de como fazer, o que sentir, como reagir. Não encontrou? Nem os sábios atenienses lhe ensinaram algo sobre isso?
Exumação, exumação, deixe-me ver os registros... Ah! Lembrei-me que na década de oitenta uma amiga de faculdade comentou que havia exumado a avó em Minas, e o quanto eu havia ficado mal impressionada com o detalhe dos cabelos brancos e compridos misturados com os ossos. Mas é isso? Só isso.
A receita para exumar quem durante um tempo mais se amou é a seguinte: Reúna um grupo de empregados do cemitério mais próximo e acompanhe a rotina. Não esmoreça quando um deles perguntar: "Mas a senhora assistirá a exumação sozinha?” Sim! O sim firme e cortante de quem finge que sabe o que virá pela frente e esgota qualquer possibilidade de manutenção do mórbido diálogo. Rigidez, utópica força. Desceu um – o mais moço da turma – para quebrar o cimento e tirar o que estava enterrado.
Vai continuar? Como? Onde está você? Acorda!
Pois é, rapaz, pelo visto sobrou para você todo trabalho ai embaixo. O que vocês fizeram? Sortearam quem desce e quem fica? Quebrou-se o encanto. Nada de cabelos e impressões ruins. Faz parte da vida, apesar de não constar do manual.
Igualmente não se encontra no livro de regras e etiquetas o que fazer com os paramédicos parados no meio da sala de estar de sua casa a olhar para o mesmo corpinho alvo e frio sem nada para fazer. Não há qualquer registro sobre como reagir ao único choro explosivo do filho, ao definir que a avó amada não iria para qualquer instituto médico da vida.
Meu filho e a imensa dor por ele sentida ao presenciar a partida de alguém tão querido, fizeram com que eu encontrasse força.
Não lhe ensinei como agir e reagir por que eu mesma não sabia, mas estava ao seu lado para segurar as rédeas e, mesmo naquele momento, ao menos lhe garantir algum exemplo. Não irá! Por ele. É este o segredo: Por ele.
Por ele sai do consultório da endocrinologista com o papelzinho na mão que me orientava a procurar cirurgião de cabeça e pescoço. Mas que raio é esse de cirurgião de cabeça e pescoço. Onde encontro esse senhor? Ora, em frente ao hospital, na casa com a placa ‘cirurgia cabeça e pescoço’.
Por favor, quem é o melhor cirurgião da equipe? Perguntou para quem, menina? Para a recepcionista do consultório? Mas é lógico, não haveria indicação melhor. Você escolhe algum par de sapatos e pergunta para a vendedora se são confortáveis. Luz! Quando nos perdemos precisamos de luz.
A recepcionista virou a simpática Ana e o cirurgião o competente doutor com mais de trinta anos de experiência que não deixou um restinho sequer da glândula para contar história, e a quem tive que consolar – eu tive que consolar – quando ele abriu o envelope com o resultado da biópsia e descobriu que era câncer.
Em menos de seis meses quanto fingir que sabe e consegue.
Passei uma semana em total angustia misturada com desespero, solidão e choro para me acostumar com a idéia antes mesmo de saber o resultado dos exames, e logo após receber alta com a garantia que não havia qualquer possibilidade de câncer. “Parabéns! Fique tranqüila! Foram três horas de cirurgia, sua tireóide estava totalmente aderente, mas não havia qualquer sinal de malignidade!” O garotão aliviado deu um salto da cama ao lado, na qual descansava da espera da mãe.
Imaginaram que tudo estaria resolvido? Pessimista eu? Não. Simplesmente, eu sabia.
Logo após a cirurgia e na primeira longa noite sozinha no quarto do hospital, com o dreno apelidado de Totó pendurado no pescoço, não foi a presença do pai que sempre curou as dores que senti, mas a de minha mãe que não saiu do meu lado. Os especialistas em almas penadas dirão que havia passado pouco tempo da “passagem” da querida nonagenária e eu responderei que cada um sente e sabe o que sente.
Foi por ele, também, que decidi enfrentar o tratamento e seguir adiante. Virar sparkly girl, radioativa, injetada e combater o medo. Descer às catacumbas radioativas do doutor rádio e seus isótopos selvagens e voltar a pé para casa, ou, ir direto para o escritório e trabalhar.
Confesso que na fase da calibragem hormonal senti vontade de desistir, mas reconheço tanto esforço e acho uma pena largar de vez.
As regras que escrevi em meu manual serviram para mim.
Quem sabe podem ajudar mais alguém.

Para sobreviver ao câncer:
- Se afaste das pessoas egoístas, mesquinhas e ruins.
- Respeite seu tempo e ritmo.
- Aprenda a escutar seu organismo.
- Cuide do que entra e do que sai: Palavras, alimento, sentimento.
- Tenha um cachorro fiel, companheiro, carinhoso e brincalhão ao lado.
- Realize algo, trabalhe, produza de fato.
- Faça tricô.
- Aprenda a cozinhar com afeto.
- Curta a solidão. Jamais se sinta desolado.
- Ouça música.
- Leia poemas.
- Reconheça a magia e a beleza das cores do pôr-do-sol e do nascer do dia.
- Caminhe.
- Chore.
- Estipule e cumpra pequenos desafios diários.
- Aprenda coisas novas.
- Reconheça que a vida é esta, uma, única.
- Não desperdice tempo, nem sentimento.
- Desenvolva memória seletiva: Mantenha o bom e esqueça o ruim.
- Aprenda mais sobre gratidão e solidariedade.
- Reze.
- Perdoe.
- Ame.

Para sobreviver a funerárias e que tais:
- Aprenda a pintar.
- Mude a cor das paredes.
- Refresque a casa: Aromas, sol, ar, luzes e cores.
- Mude de quarto.
- Arrume os armários.
- Lave todas as porcelanas e cristais.
- Mantenha lamparina acesa.
- Aprecie fotografias antigas.
- Aprenda a plantar, a cuidar e a apreciar o crescimento.
- Respeite seu tempo e ritmo.
- Tenha um cachorro fiel, companheiro, carinhoso e brincalhão ao lado.
- Chore.
- Realize algo, trabalhe, produza de fato.
- Ouça música.
- Leia poemas.
- Reconheça a magia e a beleza das cores do pôr-do-sol e do nascer do dia.
- Caminhe.
- Estipule e cumpra pequenos desafios diários.
- Aprenda coisas novas.
- Desenvolva memória seletiva: Mantenha o bom e esqueça o ruim.
- Respeite seu luto.
- Reze.
- Perdoe.
- Ame.

Para realmente comemorar a vida após funerais e câncer:
- Ame.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Paulo Leminski e Alice Ruiz

"No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas."

Paulo Leminski

* * *

"já não temo os fantasmas
invoco a todos
que venham em bando
povoar meus dias
atormentar minhas noites

entre tantos
loucos e livres
existe um
que é doce
e que me falta"

Alice Ruiz

* * *

"eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora

quem está por fora
não segura
um olhar que demora

de dentro de meu centro
este poema me olha"

Paulo Leminski

* * *

"ainda me viro
e me vejo
pronta a te chamar
a te contar
que aprendi hoje
coisas que você soube

ainda te vejo
em cada bicho
em cada pensamento
me surpreendo olhando
com teus olhos de pesquisa
e o que vejo
vira beleza

ainda te sinto
em tudo que permanece
como se tua pressa
de vida que se extingue
ficasse um pouco em tudo
ainda"

Alice Ruiz

* * *

"isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além"

Paulo Leminski

* * *

"tem os que passam
e tudo se passa
com passos já passados

tem os que partem
da pedra ao vidro
deixam tudo partido

e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado"

Alice Ruiz

* * *

"quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto"

Paulo Leminski

* * *

"devia ser proibido
uma saudade tão má
de uma pessoa tão boa
falar, gritar, reclamar
se a nossa voz não ecoa
dizer não vou mais voltar
sumir pelo mundo afora
alguém com tudo pra dar
tirar o seu corpo fora
devia ser proibido estar
do lado de cá
enquanto a lembrança voa
reviver, ter que lembrar
e calar por mais que doa
chorar, não mais respirar (ar)
dizer adeus, ir embora
você partir e ficar
pra outra vida, outra hora
devia ser proibido..."

Alice Ruiz

Alice Ruiz


quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Cabelo, cabeleira, descabelada


Bom isso de descobrir xampu que deixa o cabelo
gostoso de mexer e com aroma que faz bem.
Experimentei um novo de algodão e completei com o
de camomila e própolis. Ficou com cheirinho de coco.

Brincadeira de criança

Folia + i-tunes + i-pod + i-phone = i-feliz

Véspera

Às vezes a insônia bate de frente e resolve ficar
Persistente
Fazer o quê? Descobrir o motivo
Sempre existe um motivo
Mais uma véspera
E tudo mais que isto significa

terça-feira, 13 de novembro de 2007

O primeiro sebento

Para espanto de alguns, nunca estive em um sebo, nem comprei livro algum em sebo. Explico melhor: Sempre fui ratinha de livraria, aliás, em livrarias, em certos museus e certas lojas de CD permaneço horas sem que hora alguma exista, me perco, entro no mais puro êxtase e reconheço que a existência vale a pena. E se algum vendedor lê muito, ouve música o dia inteiro, é sensível para reconhecer meus gostos e ousado para indicar novidades, então a conquista é fiel, para sempre e o considero o mais novo membro da reduzida família.
Minha relação com livros sempre foi intensa e respeitosa. Aprendi com meus pais a ler muito e a bem cuidar dos livros. O sábio ateniense me presenteou com frases que guardo para o resto da vida “leia o que cair em suas mãos, minha filha” foi uma delas. Sigo à risca. Saudade de você, papai.
Grifar livros, fazer anotações em suas páginas foram atos ousados e meio ressentidos, somente praticados no período da faculdade de Direito, quando tempo e volume de leitura eram incompatíveis - doutrina excessiva para assimilação imediata. Assim, Washington de Barros, Sílvio Rodrigues e Pontes de Miranda foram maculados, coitados, pelo lápis que corria solto pelas suas páginas.
Volto à fidelidade e lembro de Tadeu e Enoque. O primeiro, gerente de uma livraria, conseguia qualquer livro de Direito e indicou excelentes novidades em literatura, reconheço, muitas vezes acompanhadas pelo meu desafiador olhar de descrença, daí sua insistência: “Leva que você vai gostar” e eu realmente gostava. Tadeu foi responsável pelos livros de meu filho e encontrava as excelentes opções que minha mãe garimpava nos suplementos literários do Estadão e de outros periódicos – falei que vira família. Enoque trabalhava em uma loja de CD no mais charmoso shopping de Brasília e tinha a gentil preocupação de trocar a música alta, chamariz habitual desse tipo de comércio, cada vez que eu aparecia. Saía o pagode e o sertanejo, afinal era Brasília, e por encanto apareciam sons geniais. Ele entendia muito de boa música, conseguia qualquer CD e trouxe de volta o eficaz “leva que você vai gostar”.
O encanto aumentou com a Wom (uma lojinha que ficava ao lado de casa – era só andar pela alameda de árvores e atravessar a rua entre as super-quadras, puxa! Como era gostoso morar naquele lugar) e os CD importados, muitas vezes fora de catálogo, que faziam parte da brincadeira. A relação de CD que a Wom importava era de deixar qualquer um impressionado e a graça adicional era querer alguma coisa fora daquela fantástica lista. Era desafiador descobrir alguma novidade recém lançada no exterior, ou, esquecida no tempo e no espaço e pedir para o pessoal afiado daquela loja encontrar. Nunca falharam.
Há dias organizo minhas músicas no i-tunes e estou feliz com o que descubro e volto a ouvir. Sobre o sebo? Ora, indicar livro esgotado é nisto que dá. Fui atrás de uma dica e não encontrei outra solução. No final da tarde de ontem, parei a análise do processo em seu terceiro volume e procurei o Osvaldo para aprender sobre sebos. Não existe alguém que conheça mais sobre sebos do que o Osvaldo, nem quem saiba sobre Responsabilidade Civil tanto quanto ele. Pode parar com essa cara de espanto nipônico porque nunca fui a um sebo e me ensine o caminho. Liguei para o primeiro, segundo, terceiro – livro esgotado em sebo é demais! – surgiu a indicação de um site muito legal que administra mais de trinta e sete mil livros e lá fui eu entusiasmada com o desafio de encontrar o exemplar. Está lá, nas mãos do simpático Robinson, num sebo carioca em plena Visconde de Pirajá. Queridinha você mora perto de Ipanema? – pergunta bobinha, lógico que Humaitá não fica distante – seguida pelos engraçados comentários sobre o livro, seu título, conteúdo e os desvarios desta irrequieta garota. Pelas suas risadas entendi que você também ficou interessada, por isso, mandarei o livro de volta assim que terminar a leitura. Divertida brincadeira que rompeu a rotina. Romper a rotina é bom demais.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Supremas delícias - simplicidade

Descobrir delícias na simplicidade confere a vida nova dimensão e refresca a existência, tornando-a mais leve, alegre e plena.

O segredo do bem-estar não se encontra em lugares distantes, em bens materiais cobiçados, no íntimo carinho da pessoa errada, no falso conforto experimentado, em conquistas efêmeras, mas no trabalho, na honesta produção, no sabor, na doação constante sem qualquer expectativa, nas pequenas vivências e coisas do cotidiano que fazem toda diferença e na total ausência de interesse, exercício pleno de liberdade.

Sabemos o que mais nos aflige - a causa e o efeito - mesmo no ápice de confusas e graves crises, nas quais tudo parece nos angustiar. Às vezes é necessário sair de cena, com total isenção e quietude observar a vida, reconhecer dentre tantas feridas a que mais afeta e curar. Originalidade alguma no que escrevo: Até o irracional reconhece e lambe a pior matadura.

Caminhos. Sempre os benditos caminhos. A ladainha do caminho reto, que une dois pontos, o perfeito, o mais curto, o mais acertado. A retidão considerada a qualidade máxima: Na conduta, na fé, nos sentimentos, aliada constante do dever – você deve!

Com o tempo o ‘você deve’ fica inchado e disforme, cheio das ações que lhe foram agregadas. Atlas, você deve carregar o mundo nas costas! O céu? Não, meu filho, o mundo. Carregue o mundo, isso, desse jeito, levinho como ele só. Não, não curve os joelhos, mantenha a postura elegante. Atlas, Heracles não virá. Dor nas costas? Imaginação sua. Eu sei que você não tem dor nas costas. Eu sei o que você sente!

Procuro a cachoeira na trilha do Jatobá. Subo, desço, paro e descanso, dou um beijo, abraço, esquerda, direita, meia volta, refaço o caminho e descubro novos detalhes e entendo que o mesmo caminho mudou porque aprendi a observar e que caminho refeito não é perda de tempo nem de energia mas faz parte do caminhar, ouço, sinto o aroma, descubro o gosto de fruta no pé e a cor da mais nova flor, espanto mosquito, pulo, danço, olho para frente para trás para o lado para o tudo e o nada, canto, me encanto, nado, bebo água, sonho, vejo o sol de chapéu e óculos escuros – às vezes nem o sol agüenta seu brilhar – não esqueço a essência, sorrio, digo obrigada, acaricio com o olhar.

Isto, menina! Capacete, botinhas, mochila e coragem. Sabe o que quer, querida?
Muito bem!

O meu mundo carrego por dentro.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Outro continente

International Herald Tribune
03/11/2007

"Instituições humanitárias são os novos imperialistas na África

Por Greg Mills de Johannesburgo, África do Sul

"Façamos um teste. Vamos ver qual Landcruiser de uma ONG chega primeiro ao estacionamento", disse recentemente um colega em Ruanda. Não era uma piada. A área de estacionamento de um restaurante sofisticado em qualquer capital africana revela muita coisa a respeito do novo jogo neo-imperialista que se desenrola na África. Um veículo de tração nas quatro rodas após o outro, cada um trazendo a logomarca de alguma agência doadora ou instituição de caridade voltada para as crianças, disputava o espaço para estacionar. Não é difícil também identificar o pessoal do setor humanitário. Eles geralmente são brancos e barulhentos, e preferem usar um uniforme do tipo chique-surrado composto de camiseta, calça jeans e sandálias. Mas eles são mais poderosos e geralmente menos benignos do que parecem. O fato de ter me sentado recentemente no Cafe Bourbon na reluzente área de compras em Kigali abriu os meus olhos - e os meus ouvidos - para algumas das conseqüências disso. "Precisamos apenas transferir os US$ 8,5 milhões", disse o funcionário norte-americano de uma proeminente organização não governamental. Tal dinheiro confere poder e influência consideráveis a esses indivíduos. O ruandês médio ganha US$ 240 por ano. O orçamento anual do governo é de US$ 650 milhões. Acontecimentos recentes no Chade relativos ao suposto contrabando de crianças órfãs por uma ONG ilustram, para dizer o mínimo, o grau de suspeita provocado por tal poder relativo. Aqueles que simpatizam com o povo, a maioria jovens, que realizam trabalhos humanitários na África argumentam que fornecem habilidades muito necessárias aos africanos destituídos. A defesa normalmente acrescenta que eles estão abdicando de carreiras promissoras e enfrentando dificuldades ao optar por esse trabalho. O que eles não enfatizam é o dano menos óbvio que causam. Aqueles que anteriormente prestavam serviços imperialistas sofreram dificuldades, doenças e violência. Naquela época não havia evacuação médica de emergência, a mídia para dramatizar os serviços realizados, nem astros da música pop para fazer campanhas favoráveis àqueles funcionários. E, ainda que aqueles antepassados tenham promovido políticas que hoje em dia são consideradas repulsivas, eles eram mais responsáveis do que os indivíduos engajados nesse novo serviço quase colonial. Os agentes imperialistas do passado pelo menos tinham que prestar contas aos parlamentos e contribuintes, e não a diretorias escolhidas internamente, compostas de líderes ideológicos cheios de auto-importância. Mas isso não é o pior. Recentemente Paris Hilton anunciou que será realmente corajosa e viajará para Ruanda."Sim, estou assustada", disse ela. "Ouvir dizer que é realmente perigoso. Nunca fiz uma viagem como essa". Ela estaria pretendendo "deixar a sua marca", assim como vários outros antes dela, supostamente ajudando a África enquanto ajuda a si própria.
Assim que chegar lá ela pode pensar em fazer uma visita à Millennium Development Village local, uma idéia para ajudar a África formulada pelo professor da Universidade Columbia, Jeffrey Sachs. A celebridade cabeça-de-vento poderia conhecer a celebridade da economia.
Ao explicar o que motivou a idéia da viagem, Hilton declarou: "Existe tanta necessidade nessa área, e sinto que, se for lá, isso atrairá mais atenção para aquilo que as pessoas podem fazer para ajudar".Se isso de fato ocorrer, tomara que a visita da herdeira do império da hotelaria - uma visita atualmente adiada - seja mais bem-sucedida do que o conceito de vila por meio do qual Sachs quis provar a sua teoria de que, se você fornecer recursos suficientes a uma pequena unidade, os habitantes prosperarão, em um micro-protótipo da tese do "mais ajuda é igual a mais desenvolvimento africano". O custo dos "serviços" prestados por tais estrangeiros é, como sempre, carregado pelos africanos. As suas ações, técnicas de obtenção de verbas e proeminência fortalecem a percepção de que a África é incapaz de ajudar a si mesmo, uma percepção ao mesmo tempo doméstica, e, especialmente tendo em vista as exigências feitas para o financiamento das ONGs estrangeiras, externa. O trabalho dessas pessoas perpetua a idéia do desamparo e uma mentalidade de vítima. Em um momento no qual muita gente percebeu que o desenvolvimento da África depende dos africanos determinarem as suas próprias políticas e fazerem essas escolhas, tais ações deslocam poder e ênfase para longe dos tomadores de decisões do continente.
Retratar a África como um objeto de pena é algo que também ignora o progresso bem real que o continente, atualmente no seu quarto ano consecutivo de crescimento de 6% do seu produto interno bruto, fez na solução de conflitos e elevação dos padrões de vida.
O que a África necessita é de um crescimento econômico extraordinário, e não de uma piedade extraordinária. É por isso que a África acabará cansando-se desta nova geração de imperialistas, assim como rejeitou os imperialistas anteriores.

Greg Mills é diretor da Fundação Brenthurst, com sede em Johannesburgo."

Tradução: UOL

http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/herald/2007/11/03/ult2680u592.jhtm

domingo, 4 de novembro de 2007

Juliette Binoche

Decalage Horaire (Jet Lag) é um filme encantador de Daniele Thompson escrito em parceria com seu filho, Christophe, que estreou em 2002, e fez considerável sucesso no circuito europeu de cinema.
Li sobre a sutileza emocional e a elegância formal que estão presentes nessa obra e mantenho as mesmas palavras.
É impossível não deixar-se arrebatar pela especial atuação da sempre genial Juliette Binoche e do truculento estereotipado Jean Reno, que formam uma das mais improváveis duplas da história do cinema. Durante todo o filme os dois conservam a magia, realizam maravilhas e praticam interessante exercício de íntima cumplicidade.
No movimentado aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, a esteticista, massagista, maquiadora e especialista em reflexologia, Rose, espera o embarque para Acapulco, lugar que escolheu para recomeçar a vida e fugir do namorado covarde, agressivo e vil.
Por sua vez, Felix, famoso e estressado chef de cuisine que tem sério problema com o café da manhã, também espera seu atrasado vôo para encontrar sua companheira na Alemanha.
Demora demasiada, suposta greve de aeroviários e os passageiros são obrigados a passar a noite no aeroporto. Felix consegue reserva em hotel próximo e condoído com o recente maltrato sofrido por Rose (o insuportável namorado marca sua infeliz e escandalosa presença na sala de espera do aeroporto), sugere que dividam o espaço e se refaçam do cansaço.
Assim, óleo e água se unem. A sonhadora e otimista Rose mantém adorável, inteligente e ágil diálogo com o seco e duro Felix (excelente caracterização do típico cozinheiro francês), que lhe sugere o uso de Ajax amoníaco para retirar a maquiagem do rosto. Não são pessoas felizes e seus invisíveis parceiros estão presentes o tempo todo – pelo celular a companheira de Felix não lhe dá trégua.
Apesar de suas mazelas e inseguranças, juntos descobrem sentimentos e sensações fundamentais.
Na manhã seguinte ela parte para Acapulco e ele muda seus planos e procura pelo pai, com quem havia rompido desde a adolescência. Esse é outro efeito do breve e especial encontro dos dois.
Ao chegar a seu destino, Rose encontra representante da empresa aérea com um cartaz na mão escrito Rose de Luxemburgo, que lhe entrega recado de Felix. Ela pega um táxi e segue seu percurso pelas belas e ensolaradas praias, enquanto ouve demorada e amorosa mensagem deixada por Felix no celular. Por fim, assume seu destino, pede ao motorista que dê meia volta e a leve ao aeroporto.

Gosto muito da talentosa Juliette Binoche e acompanho seu consistente desempenho, ao longo de sua brilhante carreira.

Lya Luft

"Quem - estando ausente - entra no quarto
Quem deita ao lado meu, quem passa
No meu coração seus lábios quentes, quem
Desperta em mim as feras todas
Quem me rasga e cura
Quem me atrai?

Quem murmura na treva e acende estrelas
Quem me leva em marés de sono e riso
Quem invade meu dia após a noite
Quem vem – estando ausente -
E nunca vai?"

* * *

"Se te pareço ausente, não creias:
Hora a hora o meu amor agarra-se aos teus braços,
Hora a hora o meu desejo revolve estes escombros
E escorrem dos meus olhos mais promessas.

Não acredites neste breve sono;
Não dês valor maior ao meu silêncio;
E se leres recados numa folha branca,
Não creias também: é preciso encostar
Teus lábios em meus lábios para ouvir.

Nem acredites se pensas que te falo:
Palavras
São o meu jeito mais secreto de calar."

* * *

"Tão sutilmente em tantos breves anos
Foram se trocando sobre os muros
Mais que desigualdades, semelhanças
que aos poucos dois são um, sem que no entanto
deixem de ser plurais:
talvez as asas de um só anjo, inseparáveis.
Presenças, solidões que vão tecendo a vida,
O filho que se faz, uma arvore plantada,
O tempo gotejando no telhado.
Beleza perseguida a cada hora, para que não baixe
O pó de um cotidiano desencanto..

Tão fielmente adaptam-se as almas destes corpos
Que uma em outra pode se trocar,
Sem que alguém de for a o percebesse nunca."

Dedication

"I have great faith in all things not yet spoken.
I want my deepest pious feelings freed.
What no one yet has dared to risk and warrant
will be for me a challenge I must meet.

If this presumptious seems, God, may I be forgiven.
For what I want to say to you is this:
my efforts shall be like a driving force,
quite without anger, without timidness
as little children show their love for you.

With these outflowing, river-like, with deltas
that spread like arms to reach the open sea,
with the recurrent tides that never cease
will I acknowledge you, will I proclaim you
as no one ever has before.

And if this should be arrogance, so let me
arrogant be to justify my prayer
that stands so serious and so alone
before your forehead, circled by the clouds."

Rainer Maria Rilke

Dois centímetros

Nos últimos dois anos mantive esporádica, mas não menos carinhosa relação com minha cabeleireira. Quebrei a rotina semanal da impecável executiva e deixei de cuidar de coisas que pareciam importantes, para refletir sobre fatos essenciais e indispensáveis que fazem verdadeira diferença nesta vida.
Neste aprendizado descobri maior satisfação e entusiasmo ao plantar diversas mudas, ao preparar alimentos deliciosos e ao cuidar melhor das pessoas e de mim. Experimentei o prazer do simples chá de folhas frescas de hortelã, retiradas do vaso que mantenho em casa, para curar o estômago do filho; de criar saboroso molho com o manjericão do vaso ao lado e de cortar a cebolinha no ponto certo para que continue a crescer.

Desacelerei a vida, sim. Eram cruéis e insanas as treze, quatorze horas diárias de trabalho sem fim, conseqüência direta dos desmandos de seres obtusos, incompetentes no trato da coisa alheia e desonestamente incapazes de fornecer a necessária estrutura para o correto desempenho das funções. Demanda exagerada, muitas vezes descabida e infundada, foi durante muitos anos, o sinal de alerta para o necessário basta.

Dediquei-me a outra lida, por vezes doída, desgastante e mantida pela única força possível: o amor aliado ao respeito, para estar ao lado e cuidar de alguém tão querido, transformado por distúrbios comportamentais que habitualmente acontecem, com a idade avançada, na parte final da vida.
De alguma forma você me escolheu e eu escolhi você.
O convívio diário, a dedicação integral e sem folga, o acerto de contas de duas existências, trouxe o despojado e suave esquecimento de mim. À época, não havia possibilidade de delegar parte desse esforço. Era comigo; tinha que ser. Marcou a frase perfeita do filho: Não somos esse tipo de pessoa. Pois, esse tipo de pessoas não fomos.

Assim, o cabelo prático, livre e curtinho com a nuca aparente, transformou-se na rebelde e vasta cabeleira longa, e mudou o visual de anos sem, no entanto, passar a temer o famoso corte além dos dois centímetros.
Não há mulher com cabelo longo que vá ao salão e ameaçadora deixe de dizer: Corte dois centímetros. ‘Só dois centímetros, hein!’
Nisso também sou diferente, uma vez que digo apenas corte. Mas como você quer? quero que você corte do jeito que quiser.
Verdadeira e fundada confiança costuma não fazer mal a ninguém, afinal, é o mesmo salão que freqüento há vinte anos e, no qual, me sinto em casa, cercada pela zelosa e respeitosa atenção de queridos profissionais que conhecem minha vida, acompanharam o crescimento do meu filho, atenderam minha mãe, me entendem pelo olhar e, sem serem intrusivos, compreendem meias palavras, até mesmo as não ditas. Cabelo cresce e o corte jamais é definitivo. Quer liberdade e possibilidade de ousar maior que essa? Daí vem o sorriso da satisfeita cabeleireira, com suas tesouras de vários tipos e tamanhos, aparelhos para desfiar, as mãos firmes e a imaginação solta. Faça o que você quiser.

Como vai você? Quantos anos. Que legal! Você está mais jovem e magra. Fiquei feliz ao vê-la tão bem. Parece que tudo tem algum segredo e, no caso, a tal da dieta espiritual seria a responsável por mudar até o jeito de pensar e agir da moça. Cozinhar sem gordura alguma? Mas, nem mesmo o saudável azeite? Gordura alguma! Quantos anos você segue essa dieta? Há dois anos – dois anos! – o que mais além da total ausência de gordura? O rígido horário para ingerir a, mais rígida ainda, porção diária de alimento. Uma única fruta por dia, ás 10h 27 min. Como é que é? Repito tudo para confirmar o entendimento. Sim, e se o horário for esquecido, adeus fruta daquele dia. Aliás, minha amiga que segue a mesma dieta come sua fruta dentro do carro, no trânsito, ou, em alguma reunião de trabalho. Tem também o jeito de preparar a refeição: mexa a colher três vezes no sentido horário... dê sete pulinhos (não pude evitar, os pulinhos foram de minha autoria)... Levo minha marmita para onde for. Como? Ah, cansei de jantar com amigos e pedir prato e talher para curtir minha própria refeição. A sem gordura; preparada com rituais e gestos contados; com rígido horário marcado. Céus! Voltamos cada qual para sua poltrona em lados opostos, refletidos por espelhos imensos. Olho para o rosto distraído da estóica cliente da clínica de dieta espiritual e enxergo algumas marcas... Não é bem assim.

Os diversos vidrinhos de esmalte e a quantidade de cores que existem deixam qualquer um com dúvida. Quero ousar: Esmalte escuro. Arrependo-me no mesmo instante. Mãos de menina, como as minhas, não ficam bem com esmalte escuro. E as unhas dos pés? Aí sou mais coerente e nem ouso. Não gosto das unhas dos meus pés com esmalte escuro. Não gosto das unhas dos meus pés com esmalte algum. No dia que resolver pintar as unhas dos pés com esmalte escuro, colocarei correntinha com penduricalhos no tornozelo e usarei sandália de oncinha com salto alto. Quem sabe nova tattoo bem mais aparente do que a existente? Você tem tattoo?! A vida é isso, também.

Descobri que mulheres que ofertam o braço para idosas mulheres se apoiarem, são privilegiadas pela magia do desprendido dedicar. Ultimamente vejo mais mulheres jovens, ao lado de senhoras idosas, a manter o mesmo lento caminhar. Houve vezes nas quais os vinte e dois anos que zelei por você, mamãe, pareceram pesados e sem fim. Mas passaram com a rapidez de um cometa e deixaram a fundamental e saudável certeza da dedicada devoção retribuída com muito amor.

Recebi este texto de querida amiga das Minas Gerais. Temo que, elegante, mantenha o silêncio da dor decorosa: “Milhares de anos passados e ainda não aprendemos a lidar com a morte. Dizem-no as palavras desastradas, os gestos inacabados, as lágrimas indigentes que não sabem nomear a dor de que brotam. Sustenta-se o inconfessado medo do desconhecido na sacralidade dos rituais, e neles depositamos o único consolo possível para o engano que é uma partida sem despedidas. É o assombro do indizível que nos esmaga, que me esmaga, que deixa a alma em destroços que não se sabe a que lugar pertencem. Só os mortos sabem morrer. Os rituais, esses, são para os vivos, tal como as despedidas são para quem fica. E ali sentem-se densos e quase visíveis os laços quebrados, os laços fingidos, os laços incômodos. Expostos, vergonhosamente, com o pudor da primeira nudez. Face a eles, os nós. Firmes ante o silêncio, contra a irresolução do rosto desconhecido da morte que os habita. Fica tudo por acabar. Como se resolve sozinho uma vida que era dual? Restam apenas os nós apertados em abraço. Para recolher os destroços, juntar os cacos.” Te adoro também, querida.

e e cummings

"who knows if the moon's
a balloon, coming out of a keen city
in the sky - filled with pretty people?
(and if you and i should

get into it,if they
should take me and take you into their balloon,
why then
we'd go up higher with all the pretty people

than houses and steeples and clouds:
go sailing
away and away sailing into a keen
city which nobody's ever visited, where

always
it's
Spring)and everyone's
in love and flowers pick themselves"

Cora Coralina

"Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema. E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede."

* * *

"Mãe Renovadora e reveladora do mundo
A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
não os entregues à creche.
Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar para teu filho.
Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.

Que pretendes, mulher?
Independência, igualdade de condições...
Empregos fora do lar?
És superior àqueles que procuras imitar.
Tens o dom divino
de ser mãe
Em ti está presente a humanidade.

Mulher, não te deixes castrar.
Serás um animal somente de prazer
e às vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura."

* * *

"Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida
- a vida mera
das obscuras!"

sábado, 3 de novembro de 2007

Maurice e Sarah, Justin e Tessa

Londres, 1939, durante a segunda grande guerra o escritor Maurice Bendrix inicia seu mais novo romance com a seguinte frase: “Este é um diário de ódio”.
Essa é uma das cenas do magnífico e perturbador filme de Neil Jordan, “The end of affair” (1999), baseado no livro autobiográfico de Graham Greene, que narra com perfeição o amor interrompido em tempo e estágio prematuros, por razões discutíveis e menores que a força do próprio amar.
São três personagens intensos e paradoxalmente contidos: Maurice, Sarah Miles e seu marido Henry. Li e ouvi muitas opiniões sobre o romance aparentemente
simples, mas dramático em sua essência, vivido por Sarah e Maurice. Qualificar esse amor de irracional, sexualmente libertador e proibido, é de uma simplicidade extrema, muito próxima da estupidez.
Sarah e Maurice se amam de fato, não são apenas amantes.
Henry e Sarah vivem um casamento estéril e morno, mantido por interesses e caracterizado pela hipocrisia, fator predominante nas relações que sobrevivem por este fim. Quando o homem deixa de ser homem e a mulher deixa de ser mulher, e ambos tornam-se parceiros, sócios, aliados, melhores amigos, carentes, dependentes e gratos ao sempre existente manipulador camuflado pela aparente generosidade; irmãos na pseudo-paz e segurança que acreditam experimentar, em detrimento da própria felicidade. Sufocam-se e oprimem-se em relacionamento desprovido de amor.
Em sua limitação e incapacidade de amar o fraco e egoísta Henry é incapaz de libertar Sarah.
Por sua vez, Sarah vive o dilema moral e religioso imposto pelos costumes e crenças de uma sociedade de aparências e não consegue assumir a responsabilidade pela própria vida, nem buscar sua felicidade. Assim, aparentemente resolve-se a questão, com a manutenção da dupla social e o afastamento do amoroso casal. Ao romper de forma inesperada seu relacionamento com Maurice, Sarah não esclarece o motivo e apenas cita a seguinte frase: “Deus reside nos detalhes”.
Eis o momento de maior impacto emocional: Em meio a um bombardeio aéreo a casa onde está o casal é atingida. Sarah acredita que Maurice está morto e desesperada implora a Deus pelo
milagre da vida do amado, em troca do sacrifício supremo de
jamais voltar a encontrá-lo. Dos escombros surge Maurice, mas a barganha com o Divino é mantida e Sarah se afasta. Decididamente, algumas promessas jamais deveriam ser feitas.
Infelizes e vazios procuram continuar suas vidas, mas é crescente a obsessão de Maurice para descobrir a razão do rompimento, apesar do amor que sentem.
Motivos
equivocados, comportamentos confusos, amor desperdiçado.
Li sobre a preciosa e rara química que Sarah e Maurice tinham, a mesma que muitos passam a vida sem saber exatamente o que significa.

O mesmo desperdício de tempo e sentimento é vivido por outro personagem intenso e contido que Ralph Finnes interpreta no sensacional filme “The constant gardner” (2005) de Fernando Meireles, baseado no livro de John le Carré. O diplomata britânico Justin Quayle, que ama e é amado pela mulher, trai a si mesmo ao desconfiar da infundada infidelidade de Tessa. Nesse caso, o vínculo e o forte sentimento do casal são mantidos, mas a desconfiança afasta Justin da realidade vivida pela mulher, impedindo-o de protegê-la contra os interesses político-econômicos de poderosos que dão cabo de sua vida. Com a perda de Tessa e a confirmação de sua lealdade, o atormentado Justin decide agir, sabendo que seu fim será o mesmo de sua mulher.
Sarah e Maurice, Tessa e Justin perderam o que de mais precioso tinham.
Para a platéia resta a certeza da eficácia do bom e verdadeiro diálogo, o fortalecimento da confiança e a sempre pertinente e honesta luta pelo raro amor verdadeiro. “Real love at any cost”.

Cecília Meireles

"Desejo uma fotografia
como esta - o senhor vê? - como esta:
em que para sempre me ria

como um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não... Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia."

* * *

"Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada."

* * *

"Homem vulgar! Homem de coração mesquinho!
Eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
o ritmo e o som da minha gargalhada:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármores baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpulas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.

Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
- e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas, Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trêmulas...

Escuta bem:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje essa música heróica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim."

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Elizabethtown



You have only five minutes to enjoy your delicious misery.


Enjoy it. Embrace it. Let it go. Proceed.


Sometimes the road ahead is paved with anything but good intentions.


Sereno feriado

Aprendi a curtir e a gostar de feriados. Principalmente, aprendi a desacelerar a vida em feriados e a desconsiderar a neurose que os envolve. O não ter que sair da cidade, pegar estrada movimentada, ir e voltar mais cedo para evitar congestionamento, conviver com o movimento, o serviço prejudicado, a insegurança e a violência que estão em todo lugar. Aeroportos lotados, vôos atrasados, confusão e a rotina mantida na contramão desta pausa que a vida requer. Não ter horários, romper o costume e aproveitar a liberdade é fundamental.

Acordei cedo, o corpo definiu o tempo, apreciei as cores – o céu ao nascer do dia tem matizes surpreendentes, ainda mais após noite chuvosa - e voltei a dormir. Café da manhã diferente, música, calma, paz. Aos poucos me reconheço. Fiz carinho no cão que manso e paciente ficou ao lado, a esperar o atrasado passeio matinal. A serenidade é estado da alma, não se aprende, nem se assimila. Nasce por dentro, contagia o externo e confere leveza.

As ruas estão com especial aroma e as árvores conferem bem-vindo frescor. O ar está diferente, as pessoas estão diferentes, mais coloridas e joviais. O cão caminha calmo, mantém o passo e se esquece da própria natureza, como se a coleira peitoral fosse acessório desnecessário. Alteramos o percurso, aumentamos o tempo do passeio, paramos no Benjamim para o suco de melancia gelado. Amarrei a guia na grade, o cão sentou-se quieto e recebeu carinho dos que passavam.
Lindão! Ele morde?
E ai garotão!
Que bonitinho! Olha papai.

A água que lhe dei lembrou-me nossa folia no parque da seca Brasília – com a vegetação baixa, heróica e retorcida, típica do centro-oeste – e a água-de-coco docinha e gelada que você aprendeu a beber do copinho, apesar do seu focinho e da sua falta de jeito. Fugimos do abafado e fomos ao shopping ver a nova decoração de natal – mais um natal. As patinhas deslizavam no chão de pedra lisa, mas o danadinho não perdeu a pose. Semana passada, durante o banho e a tosa, comentaram que este cão tem personalidade. Nova esticada do passeio e voltamos para casa.
Encontro o esquecido celular e vejo o registro da ligação. Não sei como me sinto. Sei.


Fundamental é não perder a capacidade de se indignar e não se anestesiar com o que acontece. Nesta semana, ao voltar do trabalho em meio ao trânsito habitual, vi uma mulher sentada na soleira de uma porta. Seu rosto estava inchado, era sofrido e triste. Seus cabelos estavam presos com a preocupação de quem quer estar arrumada, a roupa puída e os pés descalços. A maneira de seu sentar chamou minha atenção: Era recatado, elegante, feminino por natureza sem a afetação que o feminino costuma ter. No colo um pedaço de papel e na mão uma caneta. Pensativa escrevia e mantinha o olhar triste. Se o farol não tivesse aberto e se os motoristas não fossem tão impacientes e agressivos, teria saído do carro e deixado os sapatos que usava. Em segundos pensei no susto da mulher, na reação do motorista de trás por conta do semáforo perdido, na total incompreensão que dedicamos a determinados gestos e ações.
Não preciso mais me preocupar com a instituição que receberia as coisas que não mais queremos e que devem circular. Arrumarei essas coisas em acatados pacotes, enfeitados com a decência que todos nós devemos ter e os entregarei ao longo do percurso diário, com a respeitosa compaixão que aprendi na vida.
Hoje, no passeio com o cão, um pouco depois de desviá-lo de uma poça formada pela chuva na calçada, vi um homem molhar suas mãos. Ele tentava lavar as mãos na água que julguei imprópria para o cão.
Enxergo a expressão de cada rosto dos desvalidos cidadãos que encontro na rua. Observo os traços, a dignidade de alguns gestos. Algo muito errado acontece.
A vida não é assim.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Recueillement

"Sois sage, ô ma douleur, et tiens-toi plus tranquille.
Tu réclamais le soir; il descend; le voici:
Une atmosphère obscure enveloppe la ville,
Aux uns portant la paix, aux autres le souci.

Pendant que des mortels la multitude vile,
Sous le fouet du plaisir, ce bourreau sans merci,
Va cueillir des remords dans la fête servile,
Ma douleur, donne-moi la main; viens par ici,

Loin d'eux. Vois se pencher les défuntes années,
Sur le balcons du ciel, en robes surannées;
Surgir du fond des eaux le regret souriant;

Le soleil moribond's endormir sous une arche,
Et, comme un long linceul traînant à l'Orient,
Entends, ma chère, entends la douce nuit qui marche."

Charles Baudelaire

Ana Miranda

"Viste a menina pálida
Que ao baile não foi bailar?
Chorou toda a madrugada
Desmaiada no espaldar
Sapatinho de veludo
Mamãe me mandou ficar
Veio o moço capa e espada
Veio o ímpeto do dia
O travesseiro de pena
E toda a melancolia
Da janela sempre aberta
Passando a vida acolá

"O amor já é de si
Um grande arrependimento."

Debruçada no convento
Só não passa pensamento
Devaneio enfim não passa
E a chama que sempre arde
Ela reza e quer amar
Mas o amor não permite
Porque vive no limite
Abnegado tormento
O lamento não aceita
Não suporta a gelidez
De um vento sublunar
Receita de pão-de-ló
Forno de rosca caseira
Menina despedaçada
Bordando pano de prato
O pé fora do sapato
O tapete a desfiar

O tapete dos meus sonhos
Teus pés a cariciar"

* * *

"As rédeas da liberdade
Antes que passe a tarde
Antes que cesse o vento
A vida nunca é tarde
A vida nunca é solteira
A vida é uma brincadeira
Que se brinca sem brincar
Debaixo da laranjeira
Atrás do fogão a lenha
O muro de uma açucena
A queda da buganvília
A florzinha do jasmim
A vida nunca é pequena
Pequeno é o seu altar"

* * *

"Na igreja e na cozinha
Na panela a fumegar
Mexendo em tachos de cobre
Os doces de uma rainha
Morando em minha cintura
Nossa Senhora de Fátima
Nossa senhora da lágrima
Nossa senhora da cura
Nossa senhora do mel
Nossa senhora de pátina
Nossa senhora do esmero
Nossa senhora cristal
Minha senhora, socorro
Quase morro"

* * *

"E quando ali retornarmos
Verás que nunca nos fomos
Pois o lugar onde estamos
O lugar onde estaremos
É sempre o lugar que somos"