domingo, 4 de novembro de 2007

Dois centímetros

Nos últimos dois anos mantive esporádica, mas não menos carinhosa relação com minha cabeleireira. Quebrei a rotina semanal da impecável executiva e deixei de cuidar de coisas que pareciam importantes, para refletir sobre fatos essenciais e indispensáveis que fazem verdadeira diferença nesta vida.
Neste aprendizado descobri maior satisfação e entusiasmo ao plantar diversas mudas, ao preparar alimentos deliciosos e ao cuidar melhor das pessoas e de mim. Experimentei o prazer do simples chá de folhas frescas de hortelã, retiradas do vaso que mantenho em casa, para curar o estômago do filho; de criar saboroso molho com o manjericão do vaso ao lado e de cortar a cebolinha no ponto certo para que continue a crescer.

Desacelerei a vida, sim. Eram cruéis e insanas as treze, quatorze horas diárias de trabalho sem fim, conseqüência direta dos desmandos de seres obtusos, incompetentes no trato da coisa alheia e desonestamente incapazes de fornecer a necessária estrutura para o correto desempenho das funções. Demanda exagerada, muitas vezes descabida e infundada, foi durante muitos anos, o sinal de alerta para o necessário basta.

Dediquei-me a outra lida, por vezes doída, desgastante e mantida pela única força possível: o amor aliado ao respeito, para estar ao lado e cuidar de alguém tão querido, transformado por distúrbios comportamentais que habitualmente acontecem, com a idade avançada, na parte final da vida.
De alguma forma você me escolheu e eu escolhi você.
O convívio diário, a dedicação integral e sem folga, o acerto de contas de duas existências, trouxe o despojado e suave esquecimento de mim. À época, não havia possibilidade de delegar parte desse esforço. Era comigo; tinha que ser. Marcou a frase perfeita do filho: Não somos esse tipo de pessoa. Pois, esse tipo de pessoas não fomos.

Assim, o cabelo prático, livre e curtinho com a nuca aparente, transformou-se na rebelde e vasta cabeleira longa, e mudou o visual de anos sem, no entanto, passar a temer o famoso corte além dos dois centímetros.
Não há mulher com cabelo longo que vá ao salão e ameaçadora deixe de dizer: Corte dois centímetros. ‘Só dois centímetros, hein!’
Nisso também sou diferente, uma vez que digo apenas corte. Mas como você quer? quero que você corte do jeito que quiser.
Verdadeira e fundada confiança costuma não fazer mal a ninguém, afinal, é o mesmo salão que freqüento há vinte anos e, no qual, me sinto em casa, cercada pela zelosa e respeitosa atenção de queridos profissionais que conhecem minha vida, acompanharam o crescimento do meu filho, atenderam minha mãe, me entendem pelo olhar e, sem serem intrusivos, compreendem meias palavras, até mesmo as não ditas. Cabelo cresce e o corte jamais é definitivo. Quer liberdade e possibilidade de ousar maior que essa? Daí vem o sorriso da satisfeita cabeleireira, com suas tesouras de vários tipos e tamanhos, aparelhos para desfiar, as mãos firmes e a imaginação solta. Faça o que você quiser.

Como vai você? Quantos anos. Que legal! Você está mais jovem e magra. Fiquei feliz ao vê-la tão bem. Parece que tudo tem algum segredo e, no caso, a tal da dieta espiritual seria a responsável por mudar até o jeito de pensar e agir da moça. Cozinhar sem gordura alguma? Mas, nem mesmo o saudável azeite? Gordura alguma! Quantos anos você segue essa dieta? Há dois anos – dois anos! – o que mais além da total ausência de gordura? O rígido horário para ingerir a, mais rígida ainda, porção diária de alimento. Uma única fruta por dia, ás 10h 27 min. Como é que é? Repito tudo para confirmar o entendimento. Sim, e se o horário for esquecido, adeus fruta daquele dia. Aliás, minha amiga que segue a mesma dieta come sua fruta dentro do carro, no trânsito, ou, em alguma reunião de trabalho. Tem também o jeito de preparar a refeição: mexa a colher três vezes no sentido horário... dê sete pulinhos (não pude evitar, os pulinhos foram de minha autoria)... Levo minha marmita para onde for. Como? Ah, cansei de jantar com amigos e pedir prato e talher para curtir minha própria refeição. A sem gordura; preparada com rituais e gestos contados; com rígido horário marcado. Céus! Voltamos cada qual para sua poltrona em lados opostos, refletidos por espelhos imensos. Olho para o rosto distraído da estóica cliente da clínica de dieta espiritual e enxergo algumas marcas... Não é bem assim.

Os diversos vidrinhos de esmalte e a quantidade de cores que existem deixam qualquer um com dúvida. Quero ousar: Esmalte escuro. Arrependo-me no mesmo instante. Mãos de menina, como as minhas, não ficam bem com esmalte escuro. E as unhas dos pés? Aí sou mais coerente e nem ouso. Não gosto das unhas dos meus pés com esmalte escuro. Não gosto das unhas dos meus pés com esmalte algum. No dia que resolver pintar as unhas dos pés com esmalte escuro, colocarei correntinha com penduricalhos no tornozelo e usarei sandália de oncinha com salto alto. Quem sabe nova tattoo bem mais aparente do que a existente? Você tem tattoo?! A vida é isso, também.

Descobri que mulheres que ofertam o braço para idosas mulheres se apoiarem, são privilegiadas pela magia do desprendido dedicar. Ultimamente vejo mais mulheres jovens, ao lado de senhoras idosas, a manter o mesmo lento caminhar. Houve vezes nas quais os vinte e dois anos que zelei por você, mamãe, pareceram pesados e sem fim. Mas passaram com a rapidez de um cometa e deixaram a fundamental e saudável certeza da dedicada devoção retribuída com muito amor.

Recebi este texto de querida amiga das Minas Gerais. Temo que, elegante, mantenha o silêncio da dor decorosa: “Milhares de anos passados e ainda não aprendemos a lidar com a morte. Dizem-no as palavras desastradas, os gestos inacabados, as lágrimas indigentes que não sabem nomear a dor de que brotam. Sustenta-se o inconfessado medo do desconhecido na sacralidade dos rituais, e neles depositamos o único consolo possível para o engano que é uma partida sem despedidas. É o assombro do indizível que nos esmaga, que me esmaga, que deixa a alma em destroços que não se sabe a que lugar pertencem. Só os mortos sabem morrer. Os rituais, esses, são para os vivos, tal como as despedidas são para quem fica. E ali sentem-se densos e quase visíveis os laços quebrados, os laços fingidos, os laços incômodos. Expostos, vergonhosamente, com o pudor da primeira nudez. Face a eles, os nós. Firmes ante o silêncio, contra a irresolução do rosto desconhecido da morte que os habita. Fica tudo por acabar. Como se resolve sozinho uma vida que era dual? Restam apenas os nós apertados em abraço. Para recolher os destroços, juntar os cacos.” Te adoro também, querida.

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