sábado, 30 de agosto de 2008

Antonio Cicero

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigilia por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:

Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

O fim da teoria do leão

Os números finais da Olimpíada costumam provocar o que pode ser chamado de sociologia de resultados. Surgem teses sobre as causas sociais e políticas de triunfos e fracassos e a quantidade de medalhas ganhas passa a ser um medidor de virtudes nacionais. Mas, como toda a sociologia instantânea, esta tem dificuldades em lidar com o que não é óbvio. É o óbvio que ganham mais medalhas os países mais bem alimentados e ricos, que podem investir mais em esportes e preparação de atletas. Se uma Cuba ganha medalhas em desproporção ao seu poderio econômico e à sua dieta alimentar, a explicação também é óbvia. Países socialistas tradicionalmente usam o esporte como propaganda, seu investimento desproporcional é na competição ideológica. Mas outras exceções ao óbvio desafiam as teses. E muitas vezes levam a fantasias, como a teoria do leão.
Sociólogos de ocasião desenvolveram a tese de que o sucesso de atletas africanos em corridas de fundo devia-se ao fato de terem se criado num ambiente em que poder fugir do leão era condição de sobrevivência. Uma condição que se sobrepunha a todas as outras. O leão predador, claro, quando não era um leão de verdade, era uma metáfora para todos os perigos da floresta que obrigavam as pessoas a terem pernas ligeiras e agilidade inata, para não morrer. Havia vestígios da teoria do leão na velha idéia de que a ascendência africana explicava a habilidade dos brasileiros para o futebol, que ninguém no mundo igualava. Qualquer jogada do Pelé teria, entre os seus antecedentes remotos, um meneio para escapar do leão.
A teoria do leão, que é uma teoria sobre a inevitabilidade, pois diz que um certo tipo de ambiente só pode produzir um certo tipo de atleta, sofreu um duro golpe quando apareceu, numa Olimpíada de inverno, aquela equipe de trenó – da Jamaica! A importância do leão na vocação para o futebol é desmentida cada vez que se vê um Messi fazer em campo o que se esperava que um Ronaldinho fizesse. E se ainda fosse preciso um dado para mostrar como a teoria do leão é furada, basta lembrar que o país tem a maior costa contínua e algumas das piores estradas do mundo, produz mais campeões de automobilismo do que de natação.
Não fomos tão mal assim na Olimpíada. Nos casos em que poderíamos ter ido melhor, perdemos para o nosso emocionalismo. E ganhamos de todos nas categorias choro compulsivo e lamentação em equipe. No fim – esta é a minha teoria - os Jogos Olímpicos são entre os de sangue quente e os de sangue frio. Os de sangue frio ganham sempre, mas os de sangue quente são muito mais simpáticos.

Luis Fernando Veríssimo

domingo, 24 de agosto de 2008

A dança dos sapatos brancos

Médicos e exames, alguns inéditos e invasivos realizados após preparo e anestesia.
Cinco especialistas distintos, cada um com seu objetivo e dá-lhe mais exames, o desta semana antecedido por repouso de trinta minutos no pronto-socorro. Por terem ouvido a palavra câncer se esforçam para me convencer que o raio não cai duas vezes no mesmo lugar, mas, as pesquisas são realizadas com esmero.
Os dois exames que exigiram a presença obrigatória de acompanhante e foram realizados durante duas horas no hospital, sem que eu nada sentisse por estar anestesiada, obrigaram-me a chamar meu filho. Só nosso bom humor para aliviar a chatice que começou com a assinatura de uma declaração que descrevia as piores conseqüências que poderiam ocorrer – e me fez pensar em elaborar e anexar meu testamento, além da assinatura de duas testemunhas. Tem que ter muito senso de humor para manter a leveza e dissipar o medo.
Gostei de duas médicas sérias e competentes, mas não menos humanas e atenciosas e as escolhi para me acompanharem durante e após os tratamentos. Ambas têm a visão do todo – mente e corpo – e num alento honesto me tranqüilizaram e retiraram boa parte do que ia aos ombros, com o reconhecimento de que foi demais.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Interesse público

Foi estranha a atitude do policial militar que, do portão de um dos comandos localizado em movimentada avenida, segurava prancheta com dois blocos de multa e se divertia em anotar os dados de todos os carros que tentavam estacionar no supermercado em frente. Não avisou ao aplicar as sanções, não considerou que os carros entravam no estacionamento, não organizou a situação, não foi justo, nem equânime.
Não agiu, como deveria ter agido, nos dias que todos ficamos com medo de sair de casa e mesmo assim saímos, porque remédios deveriam ser comprados nas farmácias e os cães necessitavam de seus passeios. Naquela ocasião, cones imensos impediam que qualquer um se aproximasse e não havia ninguém no portão para ajudar, transmitir alguma segurança, ou, até mesmo multar. Saiu no caderno Metrópole do Estadão que 18% das multas em São Paulo são aplicadas por policiais militares, que triplicaram as autuações. De janeiro a junho deste ano, consta na matéria, 2,3 milhões de multas foram aplicadas na capital, 16,5% a mais do que nos seis primeiros meses de 2007. Essa ação deve estar de acordo com o interesse público, imagino, mas não é só isso.


Imagem de Eisenstaedt

Olimpíada - 2008

A vitória de César Cielo Filho, numa das provas mais significativas dos jogos, os 50 m de nado livre, tornando-o o nadador mais veloz de um mundo que adora a rapidez e inscrevendo o Brasil de modo definitivo no panteão do esporte mundial, trouxe de volta – ao menos para os brasileiros que competem seminus – o “espírito Olímpico” que, com a crise entre a Rússia e a Geórgia e a nossa própria dura realidade social, nos levam para bem longe dos “ninhos de pássaro” e do “cubo d’água” (cujo teto, por sinal, tem recortes idênticos aos do casco de uma tartaruga). No fundo, toda disputa esportiva produzida com ênfase dramatiza positivamente o espírito capitalista da competição justa, na qual não vence quem nasceu aqui ou ali, pertence a certo partido, é branco ou carrega o “nome de família”, mas teve o melhor desempenho. As lágrimas do campeão comovem porque exprimem a sua humanidade. Cielo Filho foi o grande campeão, mostrou-se dono mais absoluto de uma técnica de corpo e maestro de uma habilidade, vontade e poder físicos incomparáveis, mas ele não esqueceu que a medalha conquistada pertencia também a uma rede de laços que trazia dentro do seu coração. Suas lágrimas, ao ouvir o hino nacional, foram a aliança que realizou com todos nós que nos transformamos em seus pais e irmãos, graças ao espírito das disputas tão transparentes quanto a piscina na qual foi vencedor. Por ele, valeu termos ido pra China.

Roberto da Matta

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Dorival Caymmi

Música, sempre a essencial música.
Foi com meu pai que aprendi a gostar de Dorival Caymmi e a me encantar com o jeito tão especial do inigualável do mestre.
O ateniense orgulhoso de sua origem e tão encantador quanto sábio – com sua belíssima voz – cantava para mim trechos de Marina morena e seu rosto pintado a estragar a beleza que Deus lhe deu.
Vinte dias antes da morte de Caymmi, assisti a uma entrevista sua e confirmei toda a admiração que sinto por ele. "Ele tem a cara da voz. Aquela cara não podia ter outra voz, aquela voz não podia ter outra cara."

Insubstuivel.
E assim adormece esse homem que nunca precisa dormir para sonhar.


Marina, morena
Marina, você se pintou
Marina, você faça tudo
Mas faça um favor
Não pinte este rosto que eu gosto
Que eu gosto e que é só meu
Marina, você já é bonita
Com o que Deus lhe deu
Me aborreci, me zanguei
Já não posso falar
E quando eu me zango, Marina
Não sei perdoar
Eu já desculpei tanta coisa
Você não arranjava outro igual
Desculpe, Marina, morena
Mas eu tô de mal.

* * *

João Valentão é brigão
Pra dar bofetão
Não presta atenção e nem pensa na vida
A todos João intimida
Faz coisas que até Deus duvida
Mas tem seu momento na vida
É quando o sol vai quebrando
Lá pro fim do mundo pra noite chegar
É quando se ouve mais forte
O ronco das ondas na beira do mar
É quando o cansaço da lida da vida
Obriga João se sentar
É quando a morena se encolhe
Se chega pro lado querendo agradar
Se a noite é de lua
A vontade é contar mentira
É se espreguiçar
Deitar na areia da praia
Que acaba onde a vista não pode alcançar
E assim adormece esse homem
Que nunca precisa dormir pra sonhar
Porque não há sonho mais lindo do que sua terra.

* * *

No tabuleiro da baiana tem
Vatapá, Carurú, Mungunza tem Ungu pra io io
Se eu pedir você me dar o seu coração, seu amor de ia ia
No coração da Baiana também tem
Sedução, cangerê, ilusão, candonblé pra você
Juro por Deus, pelo Senhor do Bonfim
quero você baianinha inteirinha pra mim
E depois o que será de nós dois?
Seu amor é tão fulgás enganador
Tudo já fiz, fui até no cangerê
Pra ser feliz, meus trapinhos juntar com você
E depois vai ser mais uma ilusão
no amor que governa o coração

* * *

Só louco amou como eu amei
Só louco quis o bem que eu quis
Ah, insensato coração
Porque me fizeste sofrer
Porque de amor pra entender
É preciso amar, porque só louco, louco.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Maria, Nossa Mãe e Senhora

Há certos lugares nos quais vivenciamos nossa fé e sentimos amor incondicional e plena paz.
São João teria acompanhado Nossa Senhora durante e após o Calvário de Cristo e, segundo consta, teria cuidado de Nossa Mãe até sua última morada, na cidade de Éfeso, na atual Turquia. Em junho de 2000, com imenso respeito, emoção e amor, caminhei pelo bosque de oliveiras e entrei na casa simples de pedras, que seria a última habitação terrena de Maria. A paz do local é incrível e a sensação que nos proporciona inigualável. Lá, pela primeira vez na vida, me ajoelhei e pedi algo em especial para mim. Neste dia, 15 de agosto, data na qual minha religião considera a partida de Nossa Senhora para o céu, revivi com detalhes cada momento da peregrinação e do amor em abundância sentidos naquele ano. Resgatei, confirmei e fortaleci a fé, entreguei-me sem receio ao amor incondicional por Nossa Senhora, extingui a aridez e agradeci por todas as bênçãos. Palavras são poucas e incapazes de expressar certos sentimentos.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Vanity

Tenho oito fios de cabelos brancos e os deixei porque se perdem entre os castanhos.
Ao descobri-los lembrei-me da primeira e única espinha da adolescência, que parecia ocupar o rosto inteiro. Para mim, naquela época, aquela espinha chamava mais atenção do que meu olhar, meu sorriso e até mesmo meus pés, que são clássicos e bonitos. Não dou a mesma dimensão aos fios brancos, nem me preocupo com eles. Talvez para chegar até eles, aprendi o que realmente vale à pena.





Imagem de William Klein

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Sabor

Havia me esquecido o quanto é gostoso entregar-se ao sabor de um autêntico feta grego. E os acompanhamentos ideais, que lhe acentuam o gosto... Yummy

domingo, 10 de agosto de 2008

O sonho não acabou

Você tem alguém que, do nada, no lugar e tempo mais improváveis, faz carinhosa surpresa e canta esta para você? Que sorte a sua!

Hoje a minha pele já não tem cor
Vivo a minha vida seja onde for
Hoje entrei na dança e não vou sair
Vem eu sou criança, não sei fingir
Eu preciso, eu preciso de você
Ah! Eu preciso, eu preciso, eu preciso muito de você
Lá onde eu estive o sonho acabou
Cá onde eu te reencontro só começou
Lá colhi uma estrela pra te trazer
Bebe o brilho dela até entender
Que eu preciso, eu preciso de você
Ah! Eu preciso, eu preciso, eu preciso muito de você
Só feche o seu livro quem já aprendeu
Só peça outro amor quem já deu o seu
Quem não soube a sombra, não sabe a luz
Vem não perde o amor de quem te conduz
Eu preciso, eu preciso de você
Ah! Eu preciso, eu preciso, eu preciso muito de você
Eu preciso, eu preciso de você
Nós precisamos, precisamos sim
Você de mim, eu de você
Taiguara

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Santa Clara clareou e aqui quando chegar vai clarear

O pai teve força para fotografar toda a cesariana e o nascimento da menina tão querida – “não fui eu que fotografei isso, não fui eu!”, a mãe com a carinha de mamãe mais linda do mundo e a filha, que veio rápido e os pegou de surpresa, mas mesmo assim, nasceu no tempo certo porque a vida nem sempre presume planejamento e flui com sabedoria única quando as pessoas certas se encontram e permitem-se o verdadeiro amar.
Não houve qualquer barreira entre eles, por mais que todos os empecilhos do mundo estivessem presentes e, por vezes, os oprimissem insuportavelmente. Superaram diferenças, pessoas, estados, situações, crenças, medos, espaços, enganos e tristezas. Quem quer e ama de fato supera tudo sem demora.

Queria contar mais sobre as histórias da Bia, do Luciano e da Maria Clara, mas penso que eles mesmos podem se incumbir dessa tarefa.
Com todo carinho que tenho pelos três afirmo que fazem parte daquele grupo bem reduzido de pessoas especiais, que aparecem na vida da gente e pelas quais torcemos incondicionalmente. Quero que sejam felizes. Serão felizes. São felizes.

Final de tarde na maternidade: Um lindo bebê, pais encantados, irmãs que se reencontraram e se perdoaram, choros de emoção e alegria e eu fiquei leve e feliz porque presenciei tudo isso. De lá, direto para um café confortável e bem montado nos Jardins, sem uma única mosca a ocupar espaço. Ficou assim, vazio, por horas. A música de fundo, bem variada, trouxe um dos clássicos dos Herman’s Hermits: Bus stop, wet day, she’s there, I say please share my umbrella. Bus stop, bus goes, she stays, love grows under my umbrella. All the summer we enjoyed it, wind and rain and shine, that umbrella, we employed it by August, she was mine. Chovia e fazia frio. Apesar de andar quieta e um tanto calada, batemos um longo papo e, ora pílulas, mesmo com todos os pesares continuamos firmes e fortes a desafiar nossas vidas de não quereres alheios. O telefone toca e o filho-pai preocupado com o paradeiro da filha-mãe manda abraço e parte para curtir sua noite de sábado. Dormi como há tempos não dormia.

Nossos cafés começaram em outubro do ano passado e são mágicos. Eu juntei os três para que criássemos base que sustentasse as mazelas de um e todas as nossas mazelas foram sustentadas por três, com alegria e papos que duravam horas. Muitas mudanças, boas mudanças, em pouquíssimo tempo. Faz parte do bem-querer incondicional e do torcer pela felicidade do outro. Tal qual a frase do perfume das rosas, fica um pouco com a gente, sim.


Imagem de Bresson

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Colunas de borracha

De manhã um e-mail com o conselho para expor os sentimentos e eu a pensar - como algo tão simples e verdadeiro tornou-se tão complicado – não há condição nem para ligar, quanto mais para ser ouvido, ouvir e expor o que vai por dentro.

Consultei-me com médico especialista e gostei do doutor, que foi atencioso transmitiu segurança e não deixou pergunta alguma sem resposta. Saí do consultório com a incumbência de fazer dois exames meio complicados e incômodos, um deles obrigatoriamente acompanhada e anestesiada e pensava como tornar leve a mini maratona médica quando o telefone tocou e fui pega de surpresa, com a única surpresa que eu mais quero em minha vida. Aquela voz tem o poder de curar todos os meus males, mas ainda está tão limitada, cerceada e não era assim. Voltei para casa meio triste e senti a necessidade de ir à igreja, que fica perto do parque, pedir para Deus cuidar desta menina e lembrei-me da mais nova menina que nascerá com data marcada, no próximo dia 08.08.08, provavelmente às 08h00min da manhã, para firmar bem a sorte do momento e também fui ao shopping comprar mimos para Maria Clara. Voltei para casa feliz com as sacolas coloridas enfeitadas com fitas brancas e liguei para confirmar o almoço do dia seguinte com um amigo, que há tempos não encontro e a quem quero ver bem e feliz.
Do escritório para o médico, para casa, para a igreja, para o shopping, para casa e a voz não sai de mim.

Para meu espanto ando craque em garagens tortuosas e as colunas, que jamais foram revestidas de borracha, não sentem mais atração irresistível pelo meu carro.
As garagens de determinados prédios são labirintos estreitos com descidas íngremes, que vão direto para as catacumbas do centro da terra. Às vezes, dá medo. O elevador, onde fica o bendito elevador.


Imagem de Cunningham

domingo, 3 de agosto de 2008

Música

A música faz parte da minha vida, me cura, me acalma me traz paz e renova minha energia. Eu não consigo viver sem música e nas poucas vezes que ao meu redor existe apenas o silêncio, sem o barulho de água corrente, de folha seca, de passarinho, de cão, do respirar de quem amo ou a quietude da oração, nos raros momentos que o silêncio cai pesado e ocupa todo espaço fico triste por dentro.
Cresci com música em casa e ainda garotinha, antes dos seis anos, comecei as aulas de piano.

Sempre foi muito prazeroso encontrar as gravações das músicas dos cantores preferidos dos meus pais e presenteá-los com lançamentos, importados e raridades que eu encontrava em algumas lojas escolhidas a dedo em São Paulo.
A música une as pessoas, aumenta a intimidade e a afinidade, eleva as intenções. Emociona-me e, por vezes, me faz voltar no tempo, reviver coisas boas e fortalecer o bem querer.

Por mais clichê que possa ser a minha vida tem trilha sonora muito interessante, que firma a referência e o reconhecimento de quem sou.

Imagem: Quadro de Henri Matisse

sábado, 2 de agosto de 2008

Bubbles and lather

Eu sei que pode parecer meio tolo, mas é muito bom contar com o auxilio de eletrodomésticos cheio de funções eficazes, que tornam nossa vida mais fácil e melhor.
Resolvemos aposentar a máquina de lavar após oito anos de uso, sem esquecer os comentários do meu pai sobre a qualidade dos eletrodomésticos, carros e demais máquinas e equipamentos que, segundo ele, haviam se tornado descartáveis. Ele era engenheiro mecânico, sabia o que dizia e reconhecia o uso exagerado do plástico de qualidade ruim em quase tudo. Ainda tenho em casa aparelhos importados de extrema qualidade, eficácia e durabilidade, que meus pais compraram.
Escolhi três modelos, comparei preços, qualificações, capacidade, fabricante e sugeri que meu filho escolhesse o que mais lhe agradaria. Ele foi além, comprou a super king profissional, com ciclos ecológicos, trinta e cinco programas, economia de energia, duplo enxágüe, luzes azuis, vidro temperado, que fala, anda, cozinha e passa. Fiquei encantada com o vidro temperado porque, pela primeira vez, posso curtir a dança louca das roupas enquanto são lavadas e a velocidade que a centrifuga atinge e me faz lembrar o movimento inicial de uma turbina de avião. Sim, tenho um lado menina que se diverte com tudo.
Mas o que fazer com a máquina de lavar que estava em casa? Deixá-la ao lado da geladeira Gibson, que tem mais de cinqüenta anos e gela mais e melhor do que muita super geladeira que existe por aí, seria alçar a lavadora de roupas a uma categoria não merecida. Sugeri que a lavadora ficasse guardada em algum lugar para uso do pimpolho que logo, logo, montará sua própria casa, mas ele aceitou de bom grado doá-la a uma instituição de caridade. E assim foi: No mesmo dia que entregaram a máquina nova, retiraram a antiga e os quatro carregadores se auxiliaram. Doar de coração aberto é muito bom e nos faz sentir bem.


Imagem: Gil Elvgren's pin up

A pipoca

A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras que com as panelas. Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-mo a algo que poderia ter o nome de ‘culinária literária’. Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos. Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A festa de Babette, que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como ‘chef’. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo - porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.
As comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu. A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível. A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela.
Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem. Para os cristãos, religiosos, são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas. Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblê baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblê...A pipoca é um milho mirrado, sub-desenvolvido. Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!
E o que é que isso tem a ver com o Candomblê? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa - voltar a ser crianças!
Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão - sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: pum! - e ela aparece como uma outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. ‘Morre e transforma-te!’ - dizia Goethe.
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar. Meu amigo William, extraordinário professor-pesquisador da UNICAMP, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia as explicações científicas não valem. Por exemplo: em Minas ‘piruá’ é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: ‘Fiquei piruá!’ Mas acho que o poder metafórico dos piruás é muito maior. Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: ‘Quem preservar a sua vida perde-la-á.’ A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira.

Rubem Alves