segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Existiam jardins onde a lua passeava

"Se eu fosse uma coisa, amaria ver-me
como comboio-correio. Longo e nocturno,
devassando o interior, contemplado
de fugida por pinhais e estrelas,
lobos, penhascos e embruxados.
Bom parar em todas as estações.
Cabecear de sono, beber vinho, ser
banco de campónios, crianças, contrabandistas.
Aldeã que reza, desdentada e solícita.
Em cada carruagem existe sempre
um voluntário palhaço que golfa
sua alegria: coroá-lo com o clarim
do galo. E deixar em todos os lugares
as ânforas de barro das paixões
(quase sempre mal-avindas, fortuitas,
temerosas): colaborar, encher
a inocente mala do carteiro."

*        *        *

"Não gosto deste perfil de gafanhoto.
Constante sou, trepido, usam-me,
servo da gleba. Rasgo e acamo,
tenho um veio de dolorosa, serena
transmissão. Custa levar de rojo
uma vaca à cova. Esmaguei já
uma perna. Detesto o peso do reboque.
Cinco anos e ainda não percebo estas
sujas peças que rodam em mim.
A escavadora, ao menos, uiva
(amo-a). Não me agrada a sucata."

*        *        *

" Gratidão que nem sabe
a quem deve ser grata.

Por um novilho, um poldro
vagueando na pastagem,
um farol, uma escada magirus,
uma vasilha de leite, de vinho

Por um beijo, uma sonda
que não regressa de Venus,
uma safra, uma ceifa
de amantes.

Por ser crente e descrente,
matricial e fiel
ferozmente a si próprio.

Ao início, ao que foi
expurgado, à placenta, grato."

*        *        *

"Criança que despeja um grilo,
pata a pata,
víscera a víscera,
da sua pequeníssima alma.

E não há quem refaça
o grilo e a criança."

*        *        *

" Ainda me acolho, Pai,
à tua madressilva.
Ali tens a passiflora,
não envelheceu.
O cedro grande, maior ainda.
O forno, dedadas
expungidas pelas portas.
A buganvília, não esqueço,
é preciso cortá-la.
A Mãe não está nem volta."  

*        *        *

"É triste não possuir uma casa de sementes.
Não adianta amar essas partículas ali ociosas,
nem desejar que nidifiquem sem granizo
e irrompam como a chama de uma vela.

É triste pagar um preço pelo que há-de nascer,
que o bersim perca a cor alazã penetrando na terra
e o trevo da Pérsia alimente a boca das reses.

É triste que não recusem essa densa, pródiga,
obstinada servidão, a vitalidade apaixonada pelo sol,
e não façam, como um camponês, as suas contas,
exigindo a Deus e aos homens o salário da maquinação."

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