domingo, 13 de janeiro de 2008

Síndrome de Shirley Valentine

"É bom estar só em Paris - se é que alguém está realmente só em alguma cidade do mundo. E nessa noite fui fazer uma extravagância pensando que, afinal, eu mereço: jantar num restaurante caríssimo, só de coisas do mar.

Telefonei, reservei e fiquei pensando no que vou comer. Ah, tudo. Para começar, meia dúzia de ostras, mas quais? Existem várias qualidades, cada uma com um nome, e cada uma com pelo menos três tamanhos: começam os problemas.
Conheço quase todos os tipos de ostra (de vista), mas não guardei o nome de família, o que é uma falha grave. Ah, depois eu penso. Chego na hora marcada, sou levada à mesa por um maître de opereta e chamada de madame umas 15 vezes, antes de me sentar à mesa. "Bon soir, madame, vous êtes seule, madame, par ici, madame". Depois, mais umas 30: "Que désirez vous boire, madame? Vous voulez un aperitif, madame, ou préferez choisir tout de suite, madame?". Vou tomar um vinho branco; uma garrafa inteira, para não pensar em nada; só nos prazeres do paladar. Mas na hora de escolher o vinho começa; ah, se estivesse com um homem do lado. A escolha de uma mulher, no quesito vinhos, é sempre posta em questão. Estou sozinha num restaurante chiquérrimo de Paris, com três cartões de crédito na carteira e morta de medo do maître e dos garçons - tem sentido? Se escolher o mais caro, posso ser considerada uma nova rica; se pedir o mais barato, uma pobrezinha, e se pedir o mais ou menos, pior ainda: vão pensar que sou uma mais ou menos. Mas quem vai pensar? O garçom, que deve morar num quarto sem conforto num subúrbio de Paris? O maître, que deve ser cheio de problemas? E o mais importante: cada um deles deve servir a 100, 200 pessoas por dia, muitas pedindo vinhos errados, pratos errados, queijos errados. Resolvo ser humilde e peço uma sugestão, que é dada com uma certa arrogância -pelo menos segundo minha ótica subdesenvolvida. É preciso ter coragem; não conheço as ostras pelo nome, só olhando, por isso vou na sorte, e tomara que acerte -mas não acerto. Quando elas chegam, vejo que escolhi errado, mas nem pensar em devolver ou trocar. Mas no segundo prato fico feliz: como sei distinguir uma lagosta de um homard, me dou bem. E a sobremesa? Adoraria pedir um queijo, mas estou tomando vinho branco. Será que vão deixar? Deixar é bem a palavra. Me sinto uma criança que, se errar, vai levar um castigo. E de que adiantaram tantas viagens, tanta experiência de vida, se morro de medo de um garçom? Não faz o menor sentido, mas desde quando as coisas precisam fazer sentido para existirem? Desisto do queijo e peço a conta, muito mais alta do que poderia imaginar. Para quem havia planejado passar duas horas sem pensar em nada, sem um só problema, um só pensamento -bem, foi uma noite intensa, para não dizer tensa. Tensa e cara. Pego um táxi e vou para o hotel, para relaxar. Percebo que começo a me sentir feliz porque estou perto de casa - isto é, do hotel. E resolvo entrar num café onde já me conhecem e peço, contra todas as regras, um Ricard, sabendo que mesmo sendo essa uma bebida que só se bebe antes do jantar, no verão, e de preferência perto do mar, ninguém vai me olhar atravessado. Mas quando vou acender o cigarro, aquele que me dá toda a segurança do mundo, lembro que é proibido fumar; como a temperatura baixou para dois graus negativos, uma mesa na calçada está fora de questão. Que noite; ainda bem que trouxe um comprimido para dormir."

Texto de Danuza Leão publicado em 13.01.08, na Folha de São Paulo

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1301200807.htm

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