sexta-feira, 10 de abril de 2009

Adília Lopes

Gostávamos muito de doce de framboesa
e deram-nos um prato com mais doce de framboesa
do que era costume
mas
a nossa criada a nossa tia-avó no doce de framboesa
para nosso bem
porque estávamos doentes
esconderam colheres do remédio
que sabia mal
o doce de framboesa não sabia à mesma coisa
e tinha fiapos brancos
isso aconteceu-nos uma vez e chegou
nunca mais demos pulos por ir haver
doce de framboesa à sobremesa
nunca mais demos pulos nenhuns
não podemos dizer
como o remédio da nossa infância sabia mal!
como era doce o doce de framboesa da nossa infância!
ao descobrir a misturado doce de framboesa com o remédio
ficámos calados
depois ouvimos falar da entropia
aprendemos que não se separa de graça
o doce de framboesa do remédio misturados
é assim nos livros
é assim nas infâncias
e os livros são como as infâncias
que são como as pombinhas da Catrina
uma é minha
outra é tua
outra é doutra pessoa

* * *

Não gosto tanto
de livros
como Mallarmé
parece que gostava
eu não sou um livro
e quando me dizem
gosto muito dos seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreição
dos livros
e acredito que no Céu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever

Nenhum comentário: