sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Sereno feriado

Aprendi a curtir e a gostar de feriados. Principalmente, aprendi a desacelerar a vida em feriados e a desconsiderar a neurose que os envolve. O não ter que sair da cidade, pegar estrada movimentada, ir e voltar mais cedo para evitar congestionamento, conviver com o movimento, o serviço prejudicado, a insegurança e a violência que estão em todo lugar. Aeroportos lotados, vôos atrasados, confusão e a rotina mantida na contramão desta pausa que a vida requer. Não ter horários, romper o costume e aproveitar a liberdade é fundamental.

Acordei cedo, o corpo definiu o tempo, apreciei as cores – o céu ao nascer do dia tem matizes surpreendentes, ainda mais após noite chuvosa - e voltei a dormir. Café da manhã diferente, música, calma, paz. Aos poucos me reconheço. Fiz carinho no cão que manso e paciente ficou ao lado, a esperar o atrasado passeio matinal. A serenidade é estado da alma, não se aprende, nem se assimila. Nasce por dentro, contagia o externo e confere leveza.

As ruas estão com especial aroma e as árvores conferem bem-vindo frescor. O ar está diferente, as pessoas estão diferentes, mais coloridas e joviais. O cão caminha calmo, mantém o passo e se esquece da própria natureza, como se a coleira peitoral fosse acessório desnecessário. Alteramos o percurso, aumentamos o tempo do passeio, paramos no Benjamim para o suco de melancia gelado. Amarrei a guia na grade, o cão sentou-se quieto e recebeu carinho dos que passavam.
Lindão! Ele morde?
E ai garotão!
Que bonitinho! Olha papai.

A água que lhe dei lembrou-me nossa folia no parque da seca Brasília – com a vegetação baixa, heróica e retorcida, típica do centro-oeste – e a água-de-coco docinha e gelada que você aprendeu a beber do copinho, apesar do seu focinho e da sua falta de jeito. Fugimos do abafado e fomos ao shopping ver a nova decoração de natal – mais um natal. As patinhas deslizavam no chão de pedra lisa, mas o danadinho não perdeu a pose. Semana passada, durante o banho e a tosa, comentaram que este cão tem personalidade. Nova esticada do passeio e voltamos para casa.
Encontro o esquecido celular e vejo o registro da ligação. Não sei como me sinto. Sei.


Fundamental é não perder a capacidade de se indignar e não se anestesiar com o que acontece. Nesta semana, ao voltar do trabalho em meio ao trânsito habitual, vi uma mulher sentada na soleira de uma porta. Seu rosto estava inchado, era sofrido e triste. Seus cabelos estavam presos com a preocupação de quem quer estar arrumada, a roupa puída e os pés descalços. A maneira de seu sentar chamou minha atenção: Era recatado, elegante, feminino por natureza sem a afetação que o feminino costuma ter. No colo um pedaço de papel e na mão uma caneta. Pensativa escrevia e mantinha o olhar triste. Se o farol não tivesse aberto e se os motoristas não fossem tão impacientes e agressivos, teria saído do carro e deixado os sapatos que usava. Em segundos pensei no susto da mulher, na reação do motorista de trás por conta do semáforo perdido, na total incompreensão que dedicamos a determinados gestos e ações.
Não preciso mais me preocupar com a instituição que receberia as coisas que não mais queremos e que devem circular. Arrumarei essas coisas em acatados pacotes, enfeitados com a decência que todos nós devemos ter e os entregarei ao longo do percurso diário, com a respeitosa compaixão que aprendi na vida.
Hoje, no passeio com o cão, um pouco depois de desviá-lo de uma poça formada pela chuva na calçada, vi um homem molhar suas mãos. Ele tentava lavar as mãos na água que julguei imprópria para o cão.
Enxergo a expressão de cada rosto dos desvalidos cidadãos que encontro na rua. Observo os traços, a dignidade de alguns gestos. Algo muito errado acontece.
A vida não é assim.

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