terça-feira, 19 de maio de 2009

Mario Benedetti

Quando o não-ser fica em suspense
abre-se a vida esse parêntese
com um gemido universal de fome

somos famintos desde o vamos
e o seremos até o vamo-nos
depois de muito descobrir
e brevemente amar e acostumar-nos
à falida eternidade

a vida se encerra em vida
a vida esse parêntese
também se fecha incorre
em um gemido universal
o último

e então somente então
o não-ser segue para sempre

* * *

Lento mas vem
o futuro se aproxima
devagar
mas vem

hoje está mais além
das nuvens que escolhe
e mais além do trovão
e da terra firme

demorando-se vem
qual flor desconfiada
que vigila ao sol
sem perguntar-lhe nada

iluminando vem
as últimas janelas
lento mas vem
o futuro se aproxima
devagar
mas vem

já se vai aproximando
nunca tem pressa
vem com projetos
e sacos de sementes

com anjos maltratados
e fiéis andorinhas
devagar mas vem
sem fazer muito ruído
cuidando sobretudo
os sonhos proibidos

as recordações dormidas
e as recém-nascidas
lento mas vem
o futuro se aproxima
devagar
mas vem

já quase está chegando
com sua melhor notícia
com punhos com olheiras
com noites e com dias
com uma estrela pobre
sem nome ainda

lento mas vem
o futuro real
o mesmo que inventamos
nos mesmos e o acaso

cada vez mais nós mesmos
e menos o acaso
lento mas vem
o futuro se aproxima
devagar
mas vem

lento mas vem
lento mas vem
lento mas vem

* * *

É meu lugar
meu céu
meu travesseiro
meus insultos

sou quem sou porque os outros são
há uma história em cada amanhecer
e em cada transparência do crepúsculo

estive doze anos sem virar esta página
esperando sua letra suas estampas
imaginando coisas que não diz
mas que eram igualmente certas

sem virar esta página
ninguém pode ser alguém

pode somar paisagens
espigões torrentes
multidões fronteiras
pode colecionar amores e sabores
aplausos e vaias
manjares e esmolas

os rumos os atalhos
as diferenças as indiferenças
a solidariedade e o exorcismo
as ofertas saborosas os escândalos

os dedos que assinalam e os braços abertos
as decepções e as recompensas
as recusas e as convocatórias

e no entanto é verdade
sem virar esta página,
ninguém pode ser alguém.

* * *

As vezes me sinto
como uma águia no ar
(de uma canção de Pablo Milanês)
outras vezes me sinto
como pobre colina
e outras como montanha
de picos repetidos
Algumas vezes me sinto
como um escarpado
e em outras como um céu
azul mais longe
as vezes sou
manancial entre pedras
e outras vezes uma árvore
com as últimas folhas
mas hoje me sinto apenas
como lagoa insone
como um porto
já sem embarcações
uma lagoa verde
imóvel e paciente
conformada com suas algas
seus musgos e seus peixes
sereno em minha confiança
acreditando que em uma tarde
te aproximes e te olhes
te olhes ao olhar-me.


* * *

Agora tenho data
as perguntas e dúvidas convocadas
são formas de nascer no nascido

tenho ficado em suspense
espero tudo e já não espero nada

sei que não sou o mesmo
e quando enfim se abra a muralha
a primeira lembrança entrará lentamente
com cuidado infinito e com uma bengala branca

* * *

Jesus e eu respeitadas as distâncias
somos dois habitantes do exílio
e o somos por cautelosos por ingênuos

algo se quebrou na metade do verbo
e assim carregamos esta pena
restaurando vitrais e lembranças

não temos altares nem perdões
Jesus e eu de povo memoriosos
às vezes compartilhamos o exílio

compartilhamos os pães e desertos
e as cumplicidades e os judas
e o camelo e o buraco da agulha
e os sãotomases e a espada
e até os mercadores e a fúria

não é eco nem abstração
é uma história apenas

ele veterano eu inexperiente
chegamos emigrantes ao futuro
descalços e sem norte e surpresos

eu! obscuro e fraturado! sem minha terra
ele! pobre desde sempre! sem seu céu

Mario Benedetti chamava Montevidéu de cidade de todos os ventos. Acima de tudo, um poeta hábil e bondoso, fiel as suas ideias: "As causas nas quais creio me dão impulso, e por defendê-las durmo tranquilo. Não me sinto derrotado em minhas crenças ideológicas e vou continuar lutando por todas elas. Sem êxito, já sei." Morreu domingo passado, 17 de maio. No dia 14 de setembro completaria oitenta e nove anos. Li que Mario começou a partir em abril de 2006, com a morte de Luz Lópes, sua mulher durante sessenta anos. Parece que a vida não tinha mais a mesma graça. Mario Orlando Hamlet Hardy Brenno Benedetti.

Nenhum comentário: