Virada do ano, passagem, torturas comportamentais. Olha lá, aquela moça com blusa vermelha e saia branca; e aquele outro com camiseta amarela e bermuda branca; calcinhas rosadas, uniforme branco. A cor a indicar o desejo, a esperança renovada.
Todos aprendem mandingas e se torna mandatório comer doze uvas e guardar as sementes, comer romã e guardar os caroços, guardar folha de louro e providenciar uma carteira só para as sementes, caroços e folhas armazenadas na virada do ano.
Ansiedades e expectativas que judiam de muita gente.
Na véspera da véspera, da véspera, o trabalho intenso não deu trégua. Realmente, não parecia final de ano, a cidade adoravelmente vazia, leve, feliz. Ao descer a escada para buscar texto impresso veio a dor - e que dor! – e as chatas palavras pronto-socorro. Antiinflamatório, compressa gelada e tala. Tala. Tala coberta pela gaze especial, por que o pé com tala não coube na sandália de couro novinha e moderna que fiz questão de usar naquele dia. Dirigir com o pé acomodado na tala pode ser temerário, mas não mais temerário do que dirigir com dor antes da tala. Com a tala a dor quase cessou, mas ficou a presunção de culpa – ah, querida, não se meta em qualquer acidente, mesmo que você esteja certa, pois a bendita tala cria presunção. Essa mistura de dor e incômodo, com tanta coisa a fazer, e dois dias de licença médica que não considerei, chamaram breve pausa para recompor a coragem e respirar melhor. Café com sonho no lugar de sempre, o pé com tala e gaze direto no chão e o inédito caminhar lento. Fôlego retomado volto escada a cima e mantenho a perna esticada o máximo que consigo. No dia seguinte, tala, chinelos e eu voltamos à mesma escada, no último dia útil do ano.
Réveillon com o mesmo espírito de natal. O mesmo. À vontade, em paz, sem obrigações. Mas o filho queria reunir pessoas, queria festa, tinha razão. Em casa? Com o pé e a tala?
Comportamento padrão desconsiderado. Do mesmo jeito que a cor da roupa a torna uniforme, ou demonstra desejos, a virada do ano na praia tornou-se mania insana. Descer a serra e subir antes, ou depois, conviver com o mundo que resolve seguir o mesmo roteiro, para quê? Foi esse comportamento alterado que resultou em excelente comemoração. Por vinte e dois anos a família da namorada do meu filho passou o réveillon na casa de praia, mas desta vez resolveram mudar a sina e o jantar foi no vigésimo andar de um prédio em bairro alto, sem qualquer prédio na frente, melhor, sem nada que atrapalhasse a incrível vista de 270º desta cidade tão nossa. Os fogos da avenida Paulista à esquerda e tão próximos, à diante os fogos do Ibirapuera, do Morumbi, de outros bairros e todos nós encantados com aquela magia recém descoberta, até mesmo pelos próprios donos da casa que nunca haviam admirado a deliciosa festa de sua varanda, porque cumpriam o ritual de descer a serra e ficar perto do mar. Amigos queridos perto, violão e cantoria, leveza e alegria. Quem quer mais? Quem precisa de mais? Sem prévio planejamento, sem stress nem obrigação, foi o melhor réveillon de muitos, muitos anos.
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