quarta-feira, 2 de abril de 2008

Saudade

Por muito tempo saudade é a palavra mais ouvida, mas confesso que não entendo como tanta saudade sentida, ainda não é assumida para ser de fato feliz. Talvez a saudade tão dita tenha sido leviana, ou, essas sete letras foram emprestadas para dizer coisa distinta – não há coerência.
O verdadeiro significado da saudade se encontra no texto a seguir. Todos sabem, é impossível se enganar. Eu sinto muita saudade dos que foram; dos meus mortos e do vivo sem existir. A saudade só pode ser extinta – no mínimo diminuída – com a presença dos saudosos, mas quando isso ficou tão difícil, quando se complicou tanto o natural fluir, surgiu a necessidade de excluir a saudade de outro jeito, não sei qual.

Rezar e chorar

'Ao morrer, reencontramos nossos mortos queridos. Eles nos acolhem em seu meio. Não nos vemos mergulhados no vazio do nada, mas na plenitude de uma vida verdadeiramente vivida. Adentraremos um sítio penetrado pelo amor, iluminado pela verdade.' Karl Jaspers

Nos últimos anos, a vivência da perda irremediável conduziu-me a uma descoberta fora do comum. Levou-me ao entendimento que chorar é uma forma de rezar.
Choro, logo rezo; diria elegantemente um cartesiano. Rezo, logo choro; diria um estruturalista com gosto pelas esclarecedoras reversões que ajudam a descobrir dimensões ocultas; e a relativizar verdades e crenças estabelecidas. Relaciono-me de modo contraditório com todos que fazem parte de minha vida direta e indiretamente; de todos aqueles que, de algum modo, alcancei por minhas ações ou reações (que círculo imenso, Deus meu!); e logo compreendo que a todos e a cada um eu devo alguma coisa do mesmo modo que todos têm dívidas para comigo. No fundo, jaz soberano e, hoje em dia, um tanto envergonhado, o verbo amar que se desdobra em lágrimas e em palavras de agradecimento – de graças - de saudação, de confiança, de dor e de reconhecimento pela vida consciente da sua gratuidade e dos seus limites. 
O amor reconhecido nos faz ver que somos todos parte de uma pequena teia de elos sociais imperativos que, com o tempo, transforma-se num amplo oceano de laços opcionais. Por meio de marés imponderáveis, esse mar de conexões opcionais, transformam-se, por sua vez, em laços cruciais – do tipo: eu não vivo sem ela (ou ele), inventando a matéria-prima apanhada pela palavra saudade. Essa palavra-categoria luso-brasileira que, como nenhuma outra, convoca, reconciliando, choro e prece.
Dela, disse um Joaquim Nabuco relativizador e antropológico, sensível conhecedor das diferenças profundas entre sociedades e culturas, não o abolicionista e o político, para uma platéia americana no Colégio Vassar, em 1909: 
‘Mas como traduzir um sentimento que em língua alguma, a não ser na nossa, se cristalizou numa única palavra? Consideramos e proclamamos esse vocábulo o mais lindo que existe em qualquer idioma, a pérola da linguagem humana. Ele exprime as lembranças tristes da vida, mas também suas esperanças imperecíveis. Os túmulos, trazem-no gravado como inscrição: saudade. A mensagem dos amantes entre eles é saudade. Saudade é a mensagem dos ausentes à pátria e aos amigos. Saudade, como vedes, é a hera do coração, presa às suas ruínas e crescendo na própria solidão. Para traduzir-lhe o sentido, precisaríeis, em inglês, de quatro palavras: remembrance, love, grief e longing. Omitindo uma delas, não se traduziria o sentimento completo. 
No entanto, saudade não é senão uma nova forma, polida pelas lágrimas, da palavra, solidão.’
A marca desse estado, no qual até os afagos e o carinho dos amigos do coração tornam-se inúteis, é o choro como reza e a reza como choro. Pois em ambos está contida a experiência fundamental quando nos confrontamos com as situações fora de controle: com as negativas que nos roubam o pai, o filho, o amante, o irmão e o amigo; ou com as moléstias que corroem as pessoas amadas. Reza e choro tentam responder aquele porquê aconteceu justamente conosco. Um porquê imperativo, desejoso de saber (para legitimar o que é percebido como mérito, pecado ou omissão) as razões do sofrimento; esse tema central na discussão dos sistemas religiosos realizada por Weber.
O choro-reza é tão verdadeiro para a criança que tem o chocolate negado pelos pais; quanto para o adulto que passa pela dor irremediável da perda de pessoas amadas.
No soluço que nos sacode o peito e nos faz gemer de dor pela nossa condição de miséria e finitude, há o reconhecimento de que somos incompletos, perdidos, frágeis e fáceis de atingir porque tudo o que temos é relativo e passageiro.
Existe um sentido de humildade e de reconhecimento da perda de controle revelada no choro e na oração. Em ambas, há um render-se diante das frustrações do mundo ou da verdade muito mais perturbadora de que o mundo é mesmo um vale de lágrimas – um abismo arbitrário de frustrações e de perdas. Nas suas resplandecências, as lágrimas, como as rezas, deixam ver o que, ao fim e ao cabo, jamais iremos ter o que queríamos; que os outros não nos amam como gostaríamos que nos amassem; que não mereceríamos sofrer aquele (ou este) golpe da sorte ou da vida; e que nada segue como nos romances, óperas, filmes e peças teatrais. Que, enfim, nem tudo é tão trágico ou nobre, mas que – como compensação - nada é tão feio ou sórdido porque tudo passa e os sinos dobram saudando, como diz Thomas Mann, o espírito da narrativa, ou essas lágrimas que no momento em que eu escrevo este texto, são derramadas pelo meu querido irmão Renato que morreu nesta última sexta-feira santa.

Texto escrito por Roberto da Matta.

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